O habitual beijo, aguardado nos lábios, foi desviado para a testa, e aquele gesto, após os demais que a vinham inquietando, pareceu-lhe o derradeiro. Desfez o bico seco e o observou alcançar a escada, os pés pesados ganhando os degraus, a calça desbotada, os sapatos precisando de graxa.
Suspeitou que aquele fosse o dia em que ele a aguardaria em pé ao lado da cama, um jeans e uma camiseta no lugar do pijama velho, apontaria a bagagem no canto do quarto, “estou indo”, e seus olhos seriam de alívio. Diante da mala, que ele teria arrumado sozinho pela primeira vez, saberia que as coisas realmente haviam mudado e que ele estava pronto para partir. Sem mágoa, o deixaria ir, um longo abraço, lágrimas contidas, o acompanharia até a porta como a mãe que leva o filho à estação, com o coração apertado, mas a certeza de que vai ser melhor assim.
Na cozinha, demorou-se mais do que de costume no preparo do jantar, salgou a carne demais, o arroz de menos, cortou o dedo ao fatiar o tomate, chorou de dor, mesmo tendo sido apenas um cortezinho sem importância.
A mesa posta, subiu para o quarto, pensando se havia dado tempo suficiente para que ele ajeitasse tudo na mala ou se o surpreenderia ainda de cuecas, o jeans e a camiseta sobre a cama, uma pilha de camisas nas mãos, os olhos perturbados pelo flagrante. Como reagiria?, fingiria surpresa?, “o que você está fazendo?”, correria para seus braços?, “vamos tentar mais um pouco!”, e naquelas conjecturas, a escada foi se tornando mais longa, mais íngreme.
Quando pisou a soleira, ele estava de pijama, sentado na cama, “vamos?”, e diante daquela pergunta ela foi tomada pela súbita esperança de que talvez houvesse uma saída para algum lugar longe dali, onde poderiam começar tudo de novo e voltar a ser aquelas pessoas de antes, “pra onde?”, ele ficou confuso, “quer sair?”, ela ficou confusa, “sair?”, “o jantar não está pronto?”, estava. Quase alcançando a porta, não conseguiu evitar que seus olhos mirassem o canto do quarto, não havia uma mala, nem duas. Desceram.
Entre um garfo tocando o prato e um copo voltando à mesa, ele inspirou profundamente, e à iminência de uma palavra, aquela aguardada, ela travou os dentes na taça, crec, e ele levantou-se, à procura de sangue em sua boca, na camisola, na toalha, não havia sangue, não havia corte, não haveria uma corrida frenética ao hospital, pontos, analgésicos e anti-inflamatórios, não haveria declaração de abandono, tudo estava como antes, exceto pela taça lascada. Subiram.
Depois da fome, perdeu o sono, os calores, que a perturbavam há noites, reapareceram, e ela se lembrou de quando seu corpo era mais fresco e encaixava-se ao dele com perfeição, quis tocar seus cabelos, mas ele despertou antes que sua mão o alcançasse, “vou embora”, sua reação foi acender o abajur, e os olhos, que ela presumira de alívio, eram tristes.
É um conto introspectivo que me encantou, apesar de fugir da sua verve costumeira, sempre carregada de um humor irônico de que gosto muito. Esse me surpreendeu, não tanto por fugir do seu estilo, mas por fazer refletir. Gosto de situações assim, tiradas da rotina cotidiana, mas que faz refletir sobre os dias. Gostei da melancolia da personagem, da emoção represada, mas não contida, daquilo que não se resgata, por mais que se queira. Intimista e profundo. É um lado da autora que se mostra cada vez mais amadurecida no seu ofício de escrever e de encantar!
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Nossa, Sandra, que maravilha de comentário. Dá mais vontade de escrever. Bjs e obrigada.
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Olá, Fernanda. Estávamos no mesmo grupo do EC e acabamos não tendo que comentar uma a outra. Uma pena, gostaria de ter dado a ti um dez por este texto tão intimista mas também tão quebrador de expectativas.
Torci bastante pelo casal, mas compreendo que quando o fim chega, mesmo que quando ainda existe amor, e parecia existir, a gente precisa aceitar o andamento das coisas.
Sua habilidade em envolver o leitor com os problemas, conflitos, dores, expectativas dos seus personagens aqui bastante presente. Torcemos pelo destino de seus heróis ou heroínas. Isso é uma habilidade que poucos autores conseguem ter e, mais ainda, manter ao longo da obra.
Parabéns, querida. Sempre bom vir aqui.
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Oi, Iolandinha, que alegria ler este seu comentário. Que bom que torceu pelos meus personagens. Vc captou bem o que quis passar. Havia respeito e amor, mas não se podia continuar. Obrigada.
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Oi querida, adorei.
Quero mais.😊
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Ir embora para preservar o amor próprio e amar de novo sem restrições
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Oi, Rozana, sim, isso mesmo. Obrigada pela leitura e comentário.
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Uma vez começando, impossível parar.
Soube-me a pouco.
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que maravilha, obrigada
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Ei, amiga. Como sempre, vc surpreende, com tanta diversidade na sua bela escrita. Esse conto intimista e psicológico é maravilhoso, levando a gente à reflexão e à torcida pelos personagens… Embora curto, é denso, lindo, emocionante. Dá vontade de “quero mais”. Sou suspeita pra falar, pois amo sua escrita. Vc vai loooooonge, repito. Torço por isso, sinceramente.
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Ah, minha amiga querida. Que ótimo te ver pro aqui. Muito obrigada pelo apoio, sempre. Beijos.
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Cala fundo esta representação da hora do desencontro, tanto mais sofridoquanto mais viscerais as relações entre os interlocutores. Com que arte sutil o narrador sabe dizeros silêncios que unem/ desunem homem e mulher. Ritmo ágil, visual, formatação diferenciada, como pede a aualidade. Enfim, mais uma abordagem bem criativa e fora do trivial do tema. Parabéns pelo trabalho, Fernanda. Obrigada pela boa leitura. Beijos.
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Sempre gentil, precisa e atenciosa. Muito obrigada, Fátima. Beijos.
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O primeiro parágrafo começa de uma maneira poética, eu achei. E nos deixa na expectativa de que isso aconteça, não exatamente dessa forma, mas que aquela seja a noite derradeira para um amor que não é mais amor, pelo visto, e que desgasta a alma só pela convivência. Gostei de como você estruturou essa chegada dele, a recepção mecânica, a angústia impregnando o desejo. Estranho como ela espera pelo ‘estou indo’ sendo ela a pessoa consciente que afirma-se nesse primeiro parágrafo. Mas é compreensível, talvez. Fico a pensar aqui no tempo já passado dessa relação e, embora desgastada, esse vínculo que não se rompe. Não sei.
Segundo e terceiro parágrafos nos dando tempo para imaginar, junto dela, o que acontecerá e de como a construção textual vai nos empurrando para aquela escada igualmente longa. O peso da expectativa, essa coisa vai crescendo também no leitor.
E o quarto parágrafo, um balde de água fria no que ansiamos que aconteça. Eu não sei, aqui, pensando, não sei se há uma saída dessa situação sem ser a separação. Dizem que seguir em frente diante de um abismo é dar meia volta. Creio que se aplica bem aqui, nessa situação. Não há como seguir em frente. Pode-se dar meia volta e dar início a uma nova jornada.
Eu não gostei do quinto parágrafo. Achei meio forçado, talvez, essa coisa da taça trincada. Não sei bem explicar. Talvez se ele fosse mais curto, sem muito drama. Algo mais enxuto.
O último parágrafo, sim, um primor. Da leveza do começo ao peso do ‘vou embora’ e a decepção do que ela pensou ser alívio, mas aconteceu como tristeza. Acho que pela percepção de que para existir algo é preciso que haja envolvimento das duas partes, assim como quando há separação, existe ‘culpa’ de ambas as partes. Esse é um final melancólico e, até certo ponto, desolador, porque passa a sensação de que ambos serão sozinhos separadamente, mesmo sendo sozinhos juntos até então. Em algum ponto, nessa estrada a dois, houve uma bifurcação e nenhum deles se deu por conta ou fez algo a respeito. Enfim… São coisas da vida.
Seu conto é uma história bem contada sobre algo mal acabado – eu refletindo sobre o final da relação. Parabéns pelo miniconto. Ótima construção, escolha de palavras, subjetividade.
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Eu amei esse seu comentário que foi uma análise atenciosa do meu texto. Muito obrigada.
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Olá, Fernanda!! sou a Kinda voltando a ler graças a Deus!! hehe
Que triste, achei pesado.. mas por isso mesmo lindo e competente.
A mulher sempre sabe de antemão e isto é uma merda…kkkk
Torci pelo casamento mas quando ela acendeu o abajur para ver o olhar triste.. nossa… doeu.
Parabens ela sensibilidade.
❤
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Oi, Kinda, desculpe ter demorado a ver seu comentário. Muito bom te ver por aqui lendo e comentando meu texto. É isso mesmo… Beijo grande.
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Seu conto é carregado de uma história de cumplicidade linda, muito fácil de captar, graças a sua sensibilidade descritiva, Fernanda!
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Olá, Marcia, desculpe a demora em agradecer a sua leitura e doce comentário. Obrigada. Beijos.
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Amei este miniconto desde a primeira leitura. O que não é dito e apenas sugerido, a construção da atmosfera, os personagens juntos e tão distantes um do outro, a tensão e o alívio que não vem: tudo perfeito.
Um primor, daqueles que a gente tem inveja de não ter escrito!
Parabéns!
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Muito obrigada. Gi. Beijos.
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