um lugar só seu

Abriu a porta e parou na soleira. Mãe do céu! Que furacão passou aqui… Fani ficou ali, inerte por segundos, a ouvir os ruídos que vinham da cozinha: o ranger da porta do armário, o tilintar das panelas, o chiar da água dentro delas, o cicio do fósforo riscado.

Um pontapé fechou a porta, enquanto ela tirava a primeira camada de roupa. As tábuas largas do soalho fizeram um leve ruído quando as havaianas foram para debaixo da cômoda de pinho que ocupava boa parte do cômodo. Muitas coisas acabavam por repousar debaixo dela: embalagens de doces, amarrios de cabelos, um bóton e outras mil quinquilharias. A mocinha tencionava arrumar o quarto. Um dia. Não naquela manhã.

Tudo muito diferente do quarto com que sonhava desde pequenina: um espaço bem iluminado e cheio de cobertas e almofadas cor-de-rosa. Um dossel que circundasse a cama, preso por belos laços. Um guarda-roupa tão mágico quanto o de Nárnia (um dos poucos filmes a que já assistira), prateleiras com fotos e bichos de pelúcia. Aposento de princesa! E pegaria no sono brincando com as sombras nas paredes.

O seu quarto nunca seria assim. Tudo ao contrário, nada róseo ou pelúcias; apenas tricoline amarelecida e sem magia. Mais adequado para a roceira que era.  Mesmo assim, um lugar só seu.

Fani empurrou uma cadeira para trás, de modo que ficou com a cabeça a centímetros dos poucos livros e revistas velhas na estante. As pernas de uma boneca de trapos, marrom, projetavam-se próximas à sua orelha direita. Ela a pegou, colocou-a no colo e lhe dobrou o tronco fazendo com que a cabeça pendesse para a frente. Repartiu, com os dedos, os cabelos feitos de cordões e começou a mexer neles, repassando as lembranças, em parte mágoa, em parte conformismo….

Dormia ainda com aquele brinquedo e, juntas, escutavam suaves arrulhos, durante toda a noite, desejando, com eles, voar para longe, escapar do cativeiro. Mas isso jamais acontecia. Ocasionalmente, os pombos partiam, mas parecia que sempre retornavam. Se ela se fosse um dia, nunca mais ia querer voltar. Certeza.

O engraçado é que nunca havia conversado a respeito disso com ninguém. Ela olhou a boneca e colocou-a de volta na prateleira.

Fani foi até a janela e espiou a estradinha que descia para a cidade. Bastava um sopro de vento débil e escorreria pela folhagem… Pela fresta entre os vidros podia ver a roseira próxima e parte do gramado que aparecia nas fotos.

Então, ficou de cócoras, naquele canto mesmo, para conferir se continuava embaixo da cama a caixa em que guardava seus tesouros. Pegou-a sentindo-se entusiasmada, sabendo que ficaria ocupada por bom tempo, consumida pelo desejo de recordar mais sobre si mesma e sobre o verdadeiro amor na vida da família. 

Aquelas fotografias eram o que lhe restava: a bebê embalada contra o seio, rosto avermelhado, rechonchudo e sonolento, e com a mãozinha minúscula a formar um pequeno punho igualmente minúsculo ou embalada nos braços triunfantes do pai; a mãe sorrindo, cansada. As irmãs, já moças, sentadas ao pé da mãe e da irmã recém-nascida. A bebê a gatinhar, a andar, aos três anos a tentar agarrar uma bola fora do seu alcance no gramado. Ainda aos três anos a olhar espantado para o vaso quebrado. O pai a empurrando numa carrocinha vermelha, debruçado e com ar feliz. Três celebrações do Natal mais tarde. De repente, ela começou a crescer muito depressa. Quem era ela? Cadê o seu mundo?

Fechou as fotos e guardou tudo. Bem, que a vida seja assim! Sempre havia algo a ser feito…

10 comentários em “um lugar só seu

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  1. Olá, querida Fhe. A vida é um rio, não se detém, não para, se parar vira outra coisa. Interessante e terno texto. A moça em sua casa, seus sonhos, seu futuro, presente e passado num mesmo momento de intimidade. Pareceu-me os primeiros dias de uma moça após sair do ninho. A independência ainda vacilante. Bacana, querida. Beijos.

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  2. Um conto intimista que traz sonhos de menina para uma realidade menos encantadora. Talvez os sonhos tenham sido guardados junto com as lembranças em uma caixa no fundo da memória. E a protagonista não era mais o bebê das fotos, mas uma boneca de pano largada em um canto pelo tempo e talvez por si mesma. Texto delicado!

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  3. A vida sempre nos acerta antes dos sonhos, porque a realidade é sempre incompatível, ora mais, ora menos. Mas os sonhos nunca morrem. Podem adormecer, podem se empoeirar, mas permanecem em nós. Sonhos são como esperança. Difícil aceitar algumas coisas, fácil nos render a outras. Eu vejo mais do que resignação. Resiliência, talvez, não sei. Mas dá uma amargura, uma tristeza ao ler. Esses dias eu brinquei com a frase ‘a esperança é a última que morre’ – que corre, que ocorre, que foge, que f’*de. E nesse pequeno conto, ela parece que encolhe.
    Parabéns pelo texto. Abraços carinhosos.

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  4. oi, Fátima!! aqui é a Kinda.. voltando a ler, Graças a Deus!!
    que delicía de texto intimista e com margem para mistérios.. rsrs
    será apenas uma menina melancólica (me idenitificando…) ou algo ocorreu com a família e ela já não tem mais estes amores ao seu lado? ou só a vida se apresentando em cores reais e não cor de rosa como ela desejava a faz querer ir embora?
    Gostei de ficar com estas indagações…
    um abraço, querida ❤

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  5. Lindo texto, Fátima! Daqueles que a gente automaticamente lê devagar, que assim pedem para serem lidos… Pareceu-me pertencente a algo maior… um romance, talvez?
    Parabéns pela delicadeza das palavras.
    Beijo!

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