UmA Rosa
Meio-dia.
Sobre a mesa do restaurante, na praça, o gelo derrete no copo de suco. Ao lado deste – do copo -, o prato, a fome e a pressa, dispostos simetricamente, não mascaram o foco dos olhos, que mudam rapidamente para o outro canto, o da própria mesa. O da própria mão, a esquerda, que em malabarismos com o garfo, alterna-se entre porções de feijão, arroz e salada sem precisar que a atenção se desvie da outra mão, a de arma em punho, corrigindo uma pilha de provas com a impaciência das tintas vermelhas.
Meio-dia-e-dois.
A nuca ferve, atingida certeira pelo ardor do dia à pino, do sol sem trégua que pousa ao lado da conta disposta em uma bandeja onde também jaz, meio cozida, uma flor. Planta qualquer enrolada em papel celofane, e que também sua. Orvalha dramática acompanhada por um ramo de trigo.
E por um bilhete.
Meio-dia-e-dez-minutos.
Que Deus abensoe abençoe o seu dia.
A mão é hábito. E pinta em vermelho a ortografia no papel, pouco antes de deixar o troco jogado sobre a pequena bandeja. Moedas contadas para a compra da flor.
Uma rosa.
Uma só.
Uma, que irá murchar após semana depositada em copo d´água sobre a mesa da quarta-série da única escola municipal do centro daquela cidade. Uma, que será substituída por outra na semana seguinte. Suas pétalas, caídas no taco gasto de madeira, serão varridas junto ao pó de giz da aula que versa sobre artigos indefinidos.
UM, UMA, UNS, UMAS,
apagados do quadro-negro por uma aluna qualquer, escolhida aleatoriamente em meio a turma.
Meio-dia-e-vinte.
A pequena mão de uma menina apanha as moedas jogadas sobre a mesa. Suas unhas de criança estão coloridas com esmalte que o olhar percebe, mesmo sem tempo para desviar a atenção. Não conhece o rosto das garotas vendedoras daquela praça onde almoça diariamente, mas alivia a consciência ao cumprir o ritual de compra de uma flor, sempre às quartas, quando o intervalo entre as aulas permite que se estenda ali um pouco mais.
Só um pouco.
E uma rosa.
Uma só.
Uma que será esquecida sobre o balcão do cafezinho na sala dos professores, antes que uma cantineira a leve a seu destino. A mesa da mestra da quarta-série. Seu destino de murchar e ser varrida tantas e incessantes vezes é que fará parecer ser sempre a mesma. Sempre igual.
Sempre assim, meio murchas.
Todas elas.
Meio-dia-e-trinta-minutos.
Focada nas pedras do caminho até a porta do conjunto escolar, a vista leva segundos para se voltar e enxergar, um pouco adiante, meninas correndo em alvoroço sem rumo. Em seguida, coisa rápida, percebe flores voando em um flash, ante mesmo de intuir a queda de um vulto, no chão da praça do outro lado da rua.
O estampido que o ouvido registra é um tiro. Ruído rotineiro para quem trabalha naquele local. Nada demais. Por ali, um tiro é um susto.
Só isso.
Nada mais.
Ou não.
Talvez, não.
Mas, não se volta.
Vista, ouvido, mãos e consciência seguem retas rumo ao seu destino. E adentrarão a escola, desviando da correria das crianças que reagem todas ao estalo de um outro som, o do sinal da hora da aula.
Ao meio-dia da quarta seguinte, a vista estranhará, talvez, a falta de uma flor caída sobre a mesa. E é neste momento, e só então, que a rRosa passará de indefinida a artigo, o definido, e deixará de ser apenas uma, já que reconhecida pela cor de seu esmalte, na foto de capa estampada em um jornal na banca de revistas da esquina.
Naquela quarta-feira de sol, a praça estará florida. E ensolarada. E quente. Como sempre. E tudo, tudo por ali, parecerá o mesmo. Ou quase.
Sobre a mesa, e na praça, entretanto, faltará algo.
UmA Rosa.
E só.

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Obrigada. 😉
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As Contistas são d+………. 😉 …………parabéns!
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Definido ou indefinido: jogo inteligente de conceitos e palavras que trouxe certa metalinguagem para o texto. Gostei da ideia e dos recursos trabalhados, do formato. Seu estilo, Paula, é inconfundível, com as frases curtas que se complementam nas seguintes. Parabéns e beijos desta fã.
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Uau, texto hipnotizante. Parabéns. Beijos.
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Olá, Paulinha!
Um texto sublime, escrito com muita dose de sensibilidade. As frases curtas são bem encadeadas e , como sempre, usando e abusando da cumplicidade do leitor para o sentido se fazer afinal. Triste e lindo. Parabéns por outro texto incrível!
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Uau! Mais um conto impactante com seu estilo inconfundível, que vai nos enredando e nos arrebata ao final.
Maravilhoso.
Parabéns, querida!
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A rosa das quartas, a menina das rosas, a professora da quarta série, são elementos de um ciclo que se repete criando uma rotina que se engessa porque cada ação parece milimetricamente ensaiada e repetida como se fossem partes de um script de peça de teatro.
A rotina parece agradar a professora, a rotina lhe traz o conforto, e a “boa ação” das quartas (a compra da rosa) a faz se enxergar como uma pessoa especial, magnânima.
A peça não consciente se repete e se repete, mas eis que aparece o lobo mau e mata a chapeuzinho. Surpreendida por esta quebra de expectativa, a professora contempla por alguns momentos a humanidade da vendedora, até então parte do cenário cuidadosamente ensejado por ela. E então a professora percebe que quem está agora morto, era porque antes estava vivo. Era uma pessoa!
Mas na quarta seguinte ela, a vendedora morta, será apenas um ponto cego no meio da praça. Um detalhe faltando, a ausência da flor sobre a mesa, um ponto desfiado na cortina, do palco da vida que são os dias de quarta-feira.
Um abraço.
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Querida, você é perfeita! Obrigada.
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