Ela olhou para a palidez de seus pés no pequeno patamar lateral da frente da casa, iluminados pela claridade do entardecer anunciado. Dali, o horizonte já perdia a cor com o céu em tons lilases e o verde das montanhas ao longe se despedia do viço do dia.
A gata mais velha veio enroscar-se em suas pernas, buscando o afago, e a seguiu na perambulação, coisa frequente naqueles dias.
Circulou pelo jardim e enamorou-se outra vez das formas florais remanescentes. As minúsculas flores das suculentas davam o ar da graça com discrição peculiar. O gerânio vermelho misturado ao roxo exibia-se sem qualquer pudor. Ajeitou os vasos e subiu as escadas contornando a casa para ver a pitangueira e o maracujá. As dipladênias preenchiam parte da grade da divisa dos fundos, único atrativo, não fossem os pés de figo. Do outro lado, as flores-de-cera cobriam a grade de madeira feita com capricho pelo marido, atendendo suas vontades.
Daquele ponto, o sol acenava em alaranjados e vermelhos já gastos e entre nuvens espalhadas no tapete mais azulado. Combinação de cores irretocável em paleta de artista desconhecido. Todos os poentes são cobertos de saudades indizíveis, lugares longínquos da memória, pessoas de passagem.
Deixou-se ali, até perceber as estrelas pontilhando o céu. Voltou para a frente da casa e esperou pela lua cheia voluntariosa. Mais do que o poente a anunciar a noite, a lua viajante do mundo emergiu sobrepondo-se à escuridão já projetada e espelhou a luz no firmamento. Lua de poetas e amantes, de fases e mistérios. Desta vez, não a fotografaria. Guardaria a imagem para si.
O verão sempre tinha aquela sensação de cansaço, apesar da chuva rápida da tarde. Naquela hora, nem as andorinhas sobrevoavam em busca de insetos.
Na garagem, os gatos mais novos sequer se mexeram de cima do balcão das bugigangas. A família acolhera os bichanos vindos da rua e o lugar se encheu de miados, além do latido dos cães já caseiros. Tudo sempre em bagunça harmoniosa e carregada de carinhos. Lembrou-se de quando os espaços eram vazios sem a presença das pequenas criaturas e alegrou-se pela mudança.
Na cozinha, observou a ordem das coisas, algo pouco recorrente. Aquele espaço se distanciava de uma organização plena. Havia sempre xícaras e copos por lavar. Panelas e colheres deixadas para trás; uma casa que se movimentava o tempo todo, atentando à sua paciência em recolocar tudo no devido lugar.
Ouviu a música. O filho dedilhava no piano notas a espalharem uma vida dedicada aos clássicos. Reconheceu a melodia e surpreendeu-se. Era a sua música favorita, aquela que ela cantarolava lavando a louça. Parou um instante e o peito quase explodiu. Músicas traziam memórias inesquecíveis e aquela era especial. O primeiro amor de sua vida, as primeiras loucuras, os encontros, as despedidas.
Aproximou-se da sala iluminada.
O filho concentrado na execução da melodia e as partituras, como sempre, espalhadas sobre o piano e a banqueta extra. O marido sentado na poltrona, próxima à estante de livros. Livros que ele nunca leu, mas que, muitas vezes, lhe dissera sentir-se orgulhoso de sua dedicação à Literatura. A filha e o esposo assentados no sofá. Os netos e os brinquedos espalhados pelo tapete. As luzes da árvore de Natal piscando desejos de ano novo. As velas. Os papéis e caixas abertas. Um caos invejável. Uma harmonia perfeita.
Se alguma vez desejara algo além de momentos como aquele, esquecera, porque o coração aquecia-se somente ali, assim, perto daqueles que a inundavam de amor e a faziam desejar exatamente a mesma coisa todos os finais de ano.
Um texto que aquece o coração da gente. Muito bonito, uma história bem contada, que me levou a seguir os passos da protagonista do início ao fim.
Gostei do fato de não ter explicado tudo, de ter deixado certo mistério sobre ela se afastar da festa natalina e passar um bom tempo sozinha no quintal. Fiquei pensando no porquê disso. Ela volta e a louça foi limpa, ninguém a incomodou. Achei interessante porque não é uma coisa que nos ocorre escrever sobre uma noite de Natal, achei bem legal mesmo.
O título, Passagem, foi uma ótima escolha porque além de ser a passagem do ano, houve uma descrição da passagem do tempo e também uma passagem para a personagem, que vai mudando no decorrer do conto, vai se iluminando, saindo da escuridão. Muito bonito isso.
Lindo o final. Parabéns e obrigada pelo texto.
Agora vamos aos meus pitacos, que não precisam ser acatados. É somente minha opinião e minhas sugestões.
Talvez ficasse melhor se o texto iniciasse sem o pronome “Ela” e sem o “para” e sem o “seus”… Parece bobagem, talvez seja, mas acho que fica mais sonoro e elegante. Enxugaria, tirando o desnecessário. Ficaria assim: “Olhou a palidez dos pés…”
Colocaria uma vírgula aqui – “lilases, e o verde”
No segundo parágrafo, há uma repetição de grade. Talvez a segunda, de madeira, possa ser uma cerquinha.
“Vermelhos já gastos” – achei estranho.
“Todos os poentes são cobertos de saudades indizíveis, lugares longínquos da memória, pessoas de passagem” – quem fala isso? A voz aqui destoou, saiu da descrição para uma reflexão… É a narradora? é a protagonista? A mesma coisa na oração “ Lua de poetas e amantes, de fases e mistérios”. Não é errado, acredito que na literatura pode-se tudo, só não sei se foi a melhor escolha, quebrou a minha leitura.
Aqui, achei estranha a opção pelo verbo espalhar. “O filho dedilhava no piano notas a espalharem uma vida dedicada aos clássicos”
Eu tiraria a citação de que aquela música era a que ela cantarolava lavando a louça porque tira a força da surpresa dela ao ouvir a música, da música trazendo memórias…
“melodia e as partituras” – melodia, (vírgula) e as partituras
“assentados” – sentados.
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Achei o texto muito bonito, não só pelo tema, mas pela escolha estética. É uma prosa poética que traz imagens lindíssimas como essa “Todos os poentes são cobertos de saudades indizíveis, lugares longínquos da memória, pessoas de passagem” que me pareceu um fluxo de consciência do narrador.
É também um texto bastante cinestésico, você souber usar os sentidos muito bem com as cores (visão), as flores (cheiro), as frutas (paladar), a gata enroscando (tato) e a música (audição).
Como dica também acredito que pode cortar palavras desnecessárias, como o Fernanda apontou: o pronome ela, o para, entre outras.
Parabéns pelo texto e obrigada por compartilhar conosco!
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Olá. Boa tarde cara contista.
Um conto que traduz em detalhes a realidade da autora. Ou não. A descrição precisa do ambiente que a cerca (a protagonista) e as emoções que lhe provocam estes pormenores do cenário familiar. A autora faz uma declaração de amor aos seus (fictícios ou não) quando decreta que não teria outro desejo de fim de ano além do que preservar as relações, emoções e sensações que já vive, que já tem. De fato é uma visão da maturidade emocional valorizar o que amealhou e construiu pela vida, apegando-se a cada mimosa e tocante particularidade que a acompanha na faina diária. Parabéns, muito belo e descritivo texto.
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Querida Contista,
Feliz 2023!
Seu conto é uma pintura. Se tivéssemos um quadro com esta cena em nossa frente, este conto seria uma perfeita e poética descrição da imagem. Uma experiência muito interessante de que gostei muito e que, para minha leitura sempre tão sinestésica (pegando emprestado o comentário da Francine) é um convite para “entrar no quadro”.
Interessante perceber a coerência. Esta dona de casa tem seus conflitos, seus momentos de nostalgia – é humana -, mas, ao amar sua vida, seu lar, seus momentos em família, demonstra ao leitor como cada pedaço de seu mundo “está no lugar” e bem cuidado.
Minhas sugestões vão para a “lua cheia voluntariosa”. Neste parágrafo, você nos brinda com três luas, mas o que me tirou um pouco da imersão foi “voluntariosa”. Entendo perfeitamente o que quis dizer, com essa lua cheia que mexe com nossos humores e sentimentos, mas, como diria Clarice Lispector, escrever é lutar com palavras… Então, fica aqui meu estranhamento.
Outro estranhamento, que coincide com um da Fernanda: “no piano notas a espalharem”. Notas espalhadas é uma imagem perfeita. As notas brotam do piano e tomam vida. Porém, espalhar não tenha sido a palavra perfeita nesta nossa luta com elas.
No mais, você pode perceber que as sugestões são puro preciosismo, na tentativa de acrescentar algo a mais em nosso ofício de leitura crítica.
Seu conto é lindo!
É um quadro.
Uma música.
Beijos
Paula Giannini
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Alguém disse que a felicidade é continuar desejando o que já possuímos, penso que Santo Agostinho. Sua personagem é uma pessoa feliz, nesse conceito, plena e satisfeita, embora eu pense que ninguém é realmente pleno na ausência de desejos por mudanças. Seu conto é uma festa para os sentidos: formas, cores, sons, senti o pelo do gato nas minhas canelas e o cheiro das flores. Não consigo apontar nada que me tenha desagradado minimamente no seu texto. Talvez só a palavra “esposo”, por pura implicância me causou um pequeno solavanco. Parabéns pelo conto e Feliz Ano, querida contista. Beijos
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Um texto bem escrito, que descreve mais do que narra, e assim nos revela um quadro, uma cena de fim de ano. A protagonista, apesar de todo o cansaço comum da época de festas, que ela também atribui ao verão, é feliz com a sua realidade e só deseja repetir o “caos invejável” em “harmonia perfeita”.
Acho que sobrou uma crase em “atentando à sua paciência”, aliás acredito que o sentido pretendido tenha sido “atentando contra sua paciência”, e não de “dar atenção à paciência”.
Parabéns pela participação passageira, mas marcante.
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Querida colega contista,
Embora eu seja menos afeita a textos descritivos, gostei bastante da pintura expressionista construída em “Paisagem”. Concordo com os “pitacos” da Fer e fiquei apenas curiosa para saber mais do primeiro amor dessa narradora que me parece uma senhora no alto de suas reflexões quanto ao que é (e foi) viver.
Abraços,
Amanda
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Pessoas que vêm e vão, que sempre passam em nossas vidas nesta época do ano. Família, principalmente. Mudam os dias, mudam a rotina. Senti uma melancolia e um calor no coração com este texto. Fico pensando como será meu futuro, se um dia passarei a gostar de novo de natal e ano novo… Abraços e feliz 2023. ❤
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Olá,
Eu sou partidária da rotina, sempre gostei. Acho que em time bom não se mexe. Se os dias são simples e preenchidos de afeto, todos eles, por que fazer diferente?
A resignação torna-se resiliência, aceite e calmaria.
Infelizmente, entretanto, nem todos os dias são assim.
E é aí que o texto funciona, porque obedece ao tema. Há um desejo aqui, travestido de “vontade de que tudo fique bem para que eu não precise desejar que melhore”.
Teu texto, a meu ver, é filosófico.
Está bem escrito também.
Obrigada por isso.
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Ô, meu Deus..<3 que precipício de ternura este conto. Riqueza de imagens, belas,belas, tocantes : "Todos os poentes são cobertos de saudades indizíveis, lugares longínquos da memória, pessoas de passagem."
Somos todos pessoas de passagem, não é, minha sensível amiga Contista?
Oque vale, e é tudo, são momentos assim, tão bem descritos por você.
E o quadro, se prevejo, vai ganhando, gradualmente, novas pinturas, personagens que ainda virão…
Lindo! No ponto.
Parabéns e acho que sei de quem é ❤
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Republicou isso em Tudo que se prende no olhare comentado:
Meu conto “Passagem” está no blog As Contistas.
Depois de muito tempo escrevi para um desafio com temática específica. Então, espero que gostem.
Boa leitura!
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