Uto-pia – Amanda Kristensen

Argos, movido por um motor desconhecido aos Homens: a fidelidade, esperou Ulisses por anos. O cão estava velho, fraco e cansado quando seu dono retornou a Ítaca. Assim que o reconheceu – aliás o único a reconhecê-lo – Argos só pôde abanar a cauda antes de se entregar ao descanso; e como cansa esperar! Ulisses, ao ver a partida eterna do cão amigo, escondeu uma lágrima de toda a cidade: ninguém poderia saber sobre seu desejo de reestabelecer sua vida.

Esperei João Pedro por anos. Esperei que viesse o desejo de restabelecer nossas vidas; esperei…

Tempos após sua partida, eu, que sempre fui Argos, passei a ser capaz – até a primeira terça-feira do último mês do ano – de esperar somente certezas: os dias e as noites. João Pedro me ensinou tanto do ‘humano’, que esperas outras eram sonho.

Eis que me apareceu Uto, um sabiá-laranjeira que piava em minha sacada às 5h. Filhote quase sem penas e meio adoentado foi acolhido.

Cresceu bonito e passou a alargar tanto minhas primeiras horas madrugadeiras, com seus pios que dão cor alaranjada às manhãs, que passei a pensá-las incertas: sem Uto as manhãs seriam breu; como as noites sem João passaram a ter luz de mais.

Já que estava ‘moço’, Uto precisava voar e assim foi feito.

Será que em algum momento pensei em podar as asas de João?

Ainda era dezembro quando vi Uto na macieira do vizinho: ele tinha o mesmo desenho em formato de trevo (ou sorte) – de quando filhote – no centro do peito. Reconhecemo-nos.

Uto continua cantando para mim e vem bem perto, pousando os pezinhos sensíveis na sacada onde foi achado.

Achamentos salvam.

Não achei mais J. E embora tenha batido ainda ontem à minha porta, não o reconheço mais. Não se restabelecem os idos.

 Enquanto Uto-pia, renasce em mim com as manhãs uma fidelidade de penas, que parece ainda querer esperar asas francas na multidão de Joãos e Ulisses.

foto: Antônio Donizeti da Cruz

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