Três – Elisa Ribeiro (Desafio Desejo de Ano Novo)

Não. Não pode escrever o que lhe vem à cabeça.

Desejos de Ano Novo é o tema da redação. Três linhas numeradas: um, dois, três. Três desejos.

Mas ela só tem um.

Que a irmã desapareça. Que volte pra dentro da barriga da mãe, que sua mãe volte a ser como antes: ela, sua princesa.

Os olhos ejetados, a garganta seca, os dedos apertam com força o lápis, os cabelos desorganizados, a mãe já não os penteia como antes, longos minutos de manhã cedo alisando-os, tranças, rabos de cavalo, as pontas modeladas com o movimento repetido da escova e do pente.

Não. Não pode escrever.

Que a mãe não tivesse ido para o hospital, que não tivesse ficado quase um mês sem vê-la. Risco de vida, ela ouvia. A mãe deitada no quarto escuro. Não-não, você não pode entrar, sua mãe está com dor de cabeça.  Só a menina nascida antes do tempo existia, ela invisível aos quatro, tão pequena.

Agora a menina conta três. Ocupa todos os espaços da casa, embirra, morde, destrói o que é seu. A bicicleta, no dia mesmo em que a ganhou, uma distração e o espelhinho espatifado. Não chora, filha, papai dá um jeito. A fita colante junta os cacos num arranjo mal feito, seu rosto surge deformado nele.  A sua irmã não fez por mal, ela é pequena. Nada consola seu choro, as costas apoiadas na parede, primeiro alto, depois sentida, uma lágrima puxando a outra, quase em silêncio.

Três dias depois, três desejos.

O lápis tensionado, vergado entre a mão esquerda e a direita, tlec, quebra-se ao meio. A professora procura o barulho com os olhos, ela faz um sinal com a mão. Dobra-se, mexe na mochila — o estojo — pega outro lápis, o aponta o mais discretamente que pode, desdobra-se, volta os olhos para o papel sobre a mesa.

1 – Que a minha irmã cresça logo

2 – e se transforme

3 – na melhor amiga que eu tenho.

Entre as sobrancelhas, um sulco; os lábios entreabertos. A letra é sua, mas… como?

— Eu era tão insuportável assim?

— Ô, chatérrima!

— Uma pentelha.

— Isso!

— E qual a tua explicação pra essas palavras que surgiram no papel?

— Sei lá — pausa. — Uma maldição?

Gargalham, desdão-se as mãos, a mais nova envolve a mais velha com o braço, a árvore de Natal imensa ao fundo. Em três minutos começarão os fogos celebrando a chegada de 2023.  

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11 comentários em “Três – Elisa Ribeiro (Desafio Desejo de Ano Novo)

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  1. Querida Contista,
    O que é mais empolgante a amedrontador do que ganhar um novo irmão ou uma nova irmã para dividir tudo, principalmente a atenção da mãe?
    O bom é que aquela pentelha certamente se torna a melhor amiga, a melhor companhia, com quem a gente pode contar de verdade.
    Achei teu texto terno, super fluido e muito agradável de ler.
    Beijos!

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  2. Seu texto é ótimo, daqueles deliciosos de ler. Gosto desta voz infantil em um texto não infantil. Achei interessante a sua opção por dividir o conto em dois momentos bastante distintos no tempo. Uma surpresa que eu não esperava, mas que me agradou.

    Vamos às minhas sugestões, que podem ser ou não acatadas. Nada é certo ou errado, são trocas de impressões.
    Na segunda parte, quando ela pergunta “Eu era tão insuportável assim?” fiquei confusa se ela reagiu assim apenas por ter lido os três desejos. Não sei se eles suscitariam essa pergunta.

    “que sua mãe volte a ser como antes: ela, sua princesa” – talvez aqui, a opção pelos dois pontos não seja a mais acertada. Dois pontos nos leva a crer que após ele haverá uma explicação, um exemplo do que foi dito. Antes dos dois pontos você fala da mãe.

    Atenção com as regras dos diálogos:
    “— Uma pentelha.— Isso!” – Não entendi o segundo travessão. As duas falas não são da mesma pessoa?
    “— Sei lá — pausa — uma maldição?” – acho que seria assim: — Sei lá. — Pausa. — Uma maldição?

    Curtido por 1 pessoa

  3. Olá, Cherry!
    Seu texto é de uma beleza terna que me agradou muitíssimo. Amei a voz infantil e o salto temporal.
    Apenas uma sugestão: olhos ejetados eu não sei se existe, a expressão que conheço é olhos injetados (vermelhos), creio que deve ter sido essa sua intenção.
    Parabéns pelo lindo texto!

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  4. Juro que pensei que ela iria matar a bebê. Seu conto criou uma ansiedade em mim e, imagino, em quem leu. Eu sou o contrário da sua protagonista. Sempre quis deixar de ser a caçula e acabei perdendo a atençao da minha mãe por causa dela, da irmã que nasceu depois de mim. Mas isso é outra história. Parabéns, querida. Seu conto é maravilhoso. Sorte no desafio.

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  5. Ah… eu nem sei se foi um milagre ou uma maldição fazendo as palavras surgirem no primeiro momento, tamanha é a força da descrição de sentimentos. Mas com certeza é milagre de amor em um coraçãozinho que não entendia muito bem os sentimentos. Somos egoístas por natureza, mas não há nada que supere o tempo e aquele sentimento que cria raiz né?
    Eu amei seu conto. Tocou minha alma.
    Parabéns.
    Abraço!

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  6. Um anjo soprou no ouvido da garota e a maldição virou benção? A raiva, o ciúme, a sensação de abandono, tudo muito compreensível. Adorei ser pega de surpresa com o final feliz, nada como o tempo para tornar as coisas e as pessoas mais leves.
    Conto bem escrito, enredo certeiro.
    Parabéns pela adorável participação.

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  7. O ego e o superego dessa menininha se debatendo diante da prova. Ela deseja que sua irmã desapareça, mas sabe que seu desejo é indevido. Dai vem o subconsciente que sabe tudo e resolve a questão convocando o futuro que chega num salto temporal com um twist fofo. Tem um errinho de edição em “— Uma pentelha.— Isso!” faltou uma quebra de linha antes do segundo travessão. Parabéns pelo texto, querida contista. Beijos

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  8. Querida colega contista,

    Que beleza há nessa transformação dos sentimentos que pode gerar um irmão; eu, que sou filha única, consegui experimentá-los pela sua prosa! Parabéns!

    Concordo com as questões apontadas pela Fer, especialmente quanto à pontuação associada aos diálogos.

    Abraços

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  9. Querida Contista,

    Feliz 2023!

    Texto curto e delicioso que flerta com a dramaturgia na estrutura dos diálogos. Dar a luz a um texto é conceber quase que um organismo com vida própria, e, assim como filhos, textos caminham na direção que bem entendem, não é? Assim me parece ser com esta criação, assim é, igualmente, com aquilo que desejamos desejar. Os ventos mudam e os desejos também brotam não se sabe bem de onde, como a irmã que escreve sua vontade de se unir à outra. Será que os textos nos vêm de um lugar no subconsciente?

    Interessante notar que a autora parece transparecer na curta narrativa. Ao contrário da Fernanda, analiso a seguinte sentença: “— Uma pentelha.— Isso!” Para mim, este “isso” vem da autora. Isso, quero dizer “pentelha”. “Isso, quero subverter as regras e minha prosa se organiza um pouco como poesia.” Vejo uma autora que quer tocar a emoçõa e organizar esteticamente seu texto com uma certa dose de experimentação. Viajei? rsrsrs

    “Gargalham, desdão-se as mãos, a mais nova envolve a mais velha com o braço, a árvore de Natal imensa ao fundo”. Isso aqui é a imagem de um lindo filme.

    Parabéns!

    Beijos

    Paula Giannini

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  10. Quando minha irmã mais nova nasceu eu tinha quatro anos. Infelizmente eu não me lembro quase nada da minha infância, mas hoje minha irmã é parte fundamental da minha vida. Adorei o texto e pude sentir a angústia da menina e o amor que viera depois… Abraços e feliz 2023. ❤

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  11. Coisa mais profunda, íntima, indissolúvel é essa união entre irmãos.
    Aqui éramos 3. e quando meu irmão mais novo nasceu, rejeitei, queria uma irmã (já tinha um irmão).
    Minha mãe saiu com ele e disse que ia levar para adoção, eu disse “Isso!” e a vi saindo…lembro até hoje de como corri e subi correndo os degraus da casa da minha avó (fica num nível abaixo da rua), pra “impedir” que mamãe fizesse aquilo rs.
    Ela estava escondida atrás do muro..Ele, desde esse dia, meu Anjo.
    Hoje, no céu. Minha saudade,meu irmãozinho ❤
    Amei, amei! Beijos!

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