Faz frio. Não tanto quanto ontem e provavelmente menos do que daqui a dois dias quando está prevista a chegada de uma frente fria daquelas. Aqui em Lisboa é inverno.
Faz frio, mas o tema encomendado dessa crônica é o verão e eu, bom soldado, caço na memória um kairós* qualquer que possa render uma página.
Faz frio e a sensação nas minhas canelas descobertas enquanto escrevo me leva às águas gélidas do mar desse lado do oceano, tanto faz se verão, primavera, outono ou inverno.
Há três anos, quando cá cheguei, não mergulhava, nunca, no máximo molhava as mãos, os pés, as coxas quando a covardia me permitia avançar mar adentro por dois ou três metros. Só uma vez mergulhei, salvo a memória me falhe, o que é muito provável, desafiada por uma Tuga que, me vendo pé-ante-pé, encolhida e arrepiada, me disse que era assim que se fazia. E afundou de uma vez, o indicador e o polegar premindo as narinas, a água na altura das coxas como eu e ergueu-se em talvez três segundos, os cabelos apenas rinsados na superfície externa. Diante da lição, eu, Zuca, para não pagar de sei lá o quê, covarde, mal-educada, fiz igual.
Mas isso foi há três anos.
Há seis meses, no último verão, eu fui outra: mergulhei todas as vezes em que estive na praia, salvo simplificações retóricas e minha memória nada confiável. E não foram poucas, no verão vou à praia uma média de dois a três dias por semana. Algumas vezes até mergulhei de cabeça: mergulho de verdade. No próximo verão, dar umas braçadas de vez em quando está nos meus planos que, instáveis como a memória, sempre podem sofrer perdas ou acréscimos.
Há quem diga que o frio é psicológico, o que justifica eu ter levado essa minha mudança de atitude face o mar gélido para o divã virtual da minha psicóloga. Sou outra mulher, tenho o corpo menos sensível ou a mente mais corajosa, talvez tenha dito, não importa.
Corpo e mente em disputa. A premissa imposta: a palavra-tema, ou a sensação nas canelas? O que comandou no ato de escrita o mergulho em águas geladas incômodas e a metamorfose a partir dele-delas?
A indagação me atira de volta ao Himalaia recente. De volta ao dia, ou melhor à noite, em que dormi à temperatura ambiente de talvez menos cinco. A água na garrafa ao lado da cama congelou durante a madrugada e eu me levantei às sete praticamente sem ter dormido, condenada pelo frio irresolvível nas extremidades. Pois na noite seguinte, o mesmo sítio, o mesmo frio, as mesmas extremidades enregeladas, dormi como um bebê — o corpo ou a mente? —, completamente adaptada.
Volto ao texto, que deveria ter como mote o verão, mas fala sobre frio, e concluo que foi escrito pelas minhas canelas.
(*) Kairós (em grego: καιρός, “o momento oportuno”, “certo” ou “supremo”). Os gregos antigos tinham duas palavras para o tempo: chronos e kairós. Enquanto o primeiro refere-se ao tempo cronológico ou sequencial (o tempo que se mede, de natureza quantitativa), Kairós possui natureza qualitativa, o momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno.
Imagem autoral. Praia da Poça, paredão de Cascais, temperatura da água em torno de 15o.C
Olá, Elisa.
Parabéns pelo texto interessante e bem elaborado. Parabéns pelo uso de palavras pouco conhecidas. Deve ser mesmo difícil para uma brasileira que não nasceu no Sul viver em um local com a temperatura da água do mar tão baixa. O conto tem ares de crônica, e a autora não apenas conta os fatos mas os analisa como se conversasse com o leitor sobre o tema. O texto mantém o interesse de quem o lê do começo ao fim, especialmente pela habilidade da autora em envolver o leitor.
Um texto para se ler e refletir. Recomendo.
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obrigada, querida, pela leitura, pelo incentivo e tudo mais. beijos, beijos
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muito obrigada, querido, pela partilha. Beijos
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Kkkkk me sinto representada, aqui. Sinto frio até na alma nesse mar do sul do Brasil. Se entro e mergulho? Só em sonho, onde o mar é quente e acolhedor. Amei sua crônica!
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obrigada pela leitura, querida Evelyn. Eu aqui vou me acostumando a tudo, até ao inacostumável, rs
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Elisa, querida 💙
“O frio é psicológico ” traz grandes reflexões, análises, decisões oriundas de transformações…metafórica e literalmente falando, há a coragem/necessidade de enfrentar o frio, sabendo que, psicologicamente falando, em Chronos, ele estará periodicamente lá, já em Kairós, pode(rá), sim, ser transmutado em calor (aceitação?).
Sempre gosto de ler e pensar nas entrelinhas e possibilidades.
Belo texto. Beijos!
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Bela leitura, amiga, mediada pela sua apuradíssima sensibilidade. Nos adaptamos a tudo, para o bem e para o mal. Obrigadíssima pela leitura. Amo você.
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Te amo!! ❤
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Eu desde pequena falava isso – o frio é psicológico – só porque tinha mais resistência às baixas temperaturas do que meus colegas de escola. Talvez fosse algo herdado dos meus pais suíços, talvez fosse só chatice mesmo. Fato é que hoje pensei – vou lá dar uma olhadinha na crônica da Elisa, só molhar os pés na maré das suas palavras – e chuaaaá, tomei um caldo, me ensopei inteira com esse texto maravilhoso, simples, preciso e que parece um pedaço de vida já conhecido. Parabéns, você tem jeito para esse gênero literário e para todos os outros. Fazer o quê? Admirar antes de invejar! Beijos.
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Oh, amada, que comentário mais querido. Lá no Nepal aprendi que esse sentimento não é inveja, mas cobiça. Obrigadíssima pela leitura e pelo carinho, sempre. beijos.
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Eu simplesmente amei. Você disse ser sua primeira crônica, pois assim como o primeiro mergulho, torço para que se torne uma constante. O bonito, interessante e que diferenciou este bele texto é que você trouxe a poesia à crônica, contada de maneira tão fluida, deliciosa. Parabéns e texto e obrigada pelo seu texto. E viva a sua coragem de se metamorfosear e de escrever com as canelas. Amei.
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A lentinha aqui só estou respondendo hoje, rs. Obrigada, querida, pela leitura, pelo incentivo, pelo seu entusiasmo de sempre. Beijos
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Elisa, querida, seu texto é sempre fluido e quente, mesmo que seja inverno e se tenha água pelas canelas.⚘️
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Obrigada, querido Morvan. Beijos.
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… Senti o frio na canela, e a falta de ar do primeiro mergulho… amo água gelada… e sim… você se adaptou, se superou… crônica perfeita
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Ohh, querida Marita. Obrigada pelo incentivo. Beijos
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Olá, Elisa!
Eu admiro a sua capacidade de, com esse texto, falar tanto nas entrelinhas. É o não-dito que mais me calou na alma. Na história aparente, você se refere à experiência de tentar, enfrentar algo que incomoda, o frio no mar, mas é na história subentendida que está a epifania, o seu kairós. A coragem é o tentar aceitar, o frio maior. Perfeito!
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Que lindo comentário, Sandra. Obrigada.
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Detalhe: Consegui resgatar a senha!!!! Uhuuu
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Viva!!!
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Ah, o frio minha doce Elisa…
O frio.
Sua crônica, minha querida, decifra o gênero. Um instantâneo do momento repleto de camadas submersas. É no não dito que se encontra a catarse, a beleza do texto. E você decifrou isso na primeira experiência. Sinto que vejo nascer uma cronista, talento sob as águas da geleira que agora se revela. Obrigada por inaugurar tão lindamente este pseudo-desafio. Sinto-me quase na obrigação de ser a próxima.
Parabéns.
Beijos
Paula Giannini
P.s. amo você
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Que os deuses te ouçam, amiga. Beijos. Também te amo.
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Oi, Elisa. Vim do Facebook. Seu texto é interessante. A sua rebeldia de fugir do tema me encantou. Sou desse tipo. Mas não só isso. Me fez pensar e acredito que não só o frio, mas o medo é psicológico. O medo passa e a gente consegue “mergulhar”… Parabéns!!!
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Ohhh, Mere, obrigada pela leitura. Sim, fugi do tema, rs, sou dessas. Como a água fria, o medo se enfrentado deixa de ser uma ameaça. Beijos!
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Obrigada, amigo, mais uma vez.
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Que psicológico que nada rsrsrs. Sinto bastante frio, mas gosto. Adoro vestir roupas mais quentes e tomar um café fumegante. De água gelada passo longe! Adorei o texto e a imagem. Bjs ❤
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Obrigada, Vanessa. Com certeza o frio não é psicológico, hahaha. Beijos.
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