Lúcio deixava a empresa após um produtivo dia de trabalho, calmamente, como quem vai embora sem querer ir, quando o chefe, que o observava do saguão, perguntou, com a amabilidade que lhe era tão própria: “por que a pressa?, vai tirar o pai da forca?”. Lúcio apenas sorriu, eram perguntas retóricas, e ainda antes de... Continuar Lendo →
Silêncio – Renata Rothstein (Desafio Desejo de Ano Novo)
O copo vazio flutua despedidas, num canto da sala.Ausências tão presentes.A árvore de Natal. Presentes.Eu. Ainda presente, perdida na minha futura-ausência-talvez-sentida por alguém, pressinto no invisível sutilezas de um tudo que virá, enquanto o mundo gira sem parar, no tique-taque do antigo relógio de parede, marcado pela passagem do tempo.Cicatrizes. As do relógio. As minhas.Ele... Continuar Lendo →
Se um viajante em uma noite de verão – Paula Giannini – Desafio Desejo de Ano Novo
Este ano vou comer muitos doces. E telefonar todos os dias para os meus filhos. Para o meus pais. Vou aprender a nadar. E a dançar. Este é o ano para ficar bonita. Então, vou comprar um suéter. E vou usar. Vou viajar para um lugar bem frio só para poder usar o suéter. Mudar... Continuar Lendo →
1 – Francine Cruz (Desafio Desejo de Ano Novo)
Só isso.Apenas um já me deixaria satisfeita.Um daqueles que abrasam o coração e dão força para seguir.Há tempos tudo é marasmo, cinza e morno.Não há piadas que me façam sorrir, nem tragédias capazes de me fazer chorar.Sequei. Me abandonei.Qualquer coisa para me tirar dessa inércia, para me arrancar desse limbo.Algo que me toque a alma... Continuar Lendo →
Uto-pia – Amanda Kristensen
Argos, movido por um motor desconhecido aos Homens: a fidelidade, esperou Ulisses por anos. O cão estava velho, fraco e cansado quando seu dono retornou a Ítaca. Assim que o reconheceu – aliás o único a reconhecê-lo – Argos só pôde abanar a cauda antes de se entregar ao descanso; e como cansa esperar! Ulisses,... Continuar Lendo →
Novenas – Francine Cruz
Nos dezembros da minha infância, dias e noites eram de pura curiosidade. O vento quente lambendo os braços nus, a terra vermelha impregnada nos pés brincantes e sempre uma ideia espevitada rondando os pensamentos. Nesse mês, suposições do ano inteiro eram respondidas e surgiam piadas que durariam a vida inteira. Era um tempo especial, de... Continuar Lendo →
Passagem – Evelyn Postali (Desafio Desejo de Ano Novo)
Ela olhou para a palidez de seus pés no pequeno patamar lateral da frente da casa, iluminados pela claridade do entardecer anunciado. Dali, o horizonte já perdia a cor com o céu em tons lilases e o verde das montanhas ao longe se despedia do viço do dia. A gata mais velha veio enroscar-se em... Continuar Lendo →
FIO DENTAL – Juliana Calafange
Enquanto passa fio dental nos dentes, Dr. Peixoto observa sua imagem no espelho. O velho espelho do banheiro está lá desde que comprou a casa, fazem já 24 anos. É um bom espelho, ele pensa. Sempre fora bom para ele. Sempre refletira sua imagem com elegância e sutileza, embaçando os buracos resultantes da acne adolescente... Continuar Lendo →
exercício de distanciamento – sabrina dalbelo
distanciamento. esse é um belo exercício, e não falo aqui de distanciamento entre as pessoas, mas das expectativas delas em relação à uma ação. é entender que a gente age conforme nossos princípios, aprendizados, vivências e que, ao provocar uma reação exasperada no outro (que esperava algo totalmente diferente de nós), o foco não está... Continuar Lendo →
ANTROPOCENTRISMO – Juliana Calafange
Em algum astro no remoto rincão do espaço sideral, surgiu uma espécie de seres que julgou dominar tudo aquilo que estava ao seu redor. Foi o minuto mais soberbo da história do Universo. Mas foi apenas um minuto. Rapidamente esse astro congelou e esses seres desapareceram. (Filósofo anônimo. Codinome: Nietsche) Que o Homem se sinta... Continuar Lendo →
Garota Caveira (Vanessa)
"CORPO ENCONTRADO NA PRAIA BEIRA-MAR NORTE, FLORIANÓPOLIS" Segundo a Polícia Militar, o corpo de Breno Oliveira (29) foi encontrado na manhã da última sexta-feira (27). Ao lado do cadáver estava seu irmão menor (15) em estado de choque e muito perturbado. A perícia fez uma busca pelos arredores, encontrando várias garrafas de bebidas alcoólicas, cigarros... Continuar Lendo →
Trilátero Aurífero – Luciana Merley – Estreia
Os olhos dela esperavam, noite a noite, a rouquidão do último apito longo. Só anoiteciam de vez lá pelas onze e quinze. Uma última olhada pela greta da veneziana que era limpa por dentro e cinza por fora. O feixe de luz vindo da locomotiva parada lá atrás, decadente, esticava, esticava (...) até não poder... Continuar Lendo →
PERSPECTIVA – Juliana Calafange
De qualquer maneira, de helicóptero, o desespero é mesmo tranquilo; o desespero e a tranquilidade parecem ser, aliás, a mesma coisa, quando vistos daqui. Gonçalo M. Tavares - Visto de helicóptero Uma velha senhora toma chá junto à janela do seu apartamento, como faz todos os dias às cinco da tarde. Enquanto bebe o líquido... Continuar Lendo →
(Um)A Rosa – Paula Giannini
UmA Rosa Meio-dia. Sobre a mesa do restaurante, na praça, o gelo derrete no copo de suco. Ao lado deste - do copo -, o prato, a fome e a pressa, dispostos simetricamente, não mascaram o foco dos olhos, que mudam rapidamente para o outro canto, o da própria mesa. O da própria mão, a... Continuar Lendo →
Estou indo embora – Fernanda Caleffi Barbetta
O habitual beijo, aguardado nos lábios, foi desviado para a testa, e aquele gesto, após os demais que a vinham inquietando, pareceu-lhe o derradeiro. Desfez o bico seco e o observou alcançar a escada, os pés pesados ganhando os degraus, a calça desbotada, os sapatos precisando de graxa. Suspeitou que aquele fosse o dia em... Continuar Lendo →
O especialista – Elisa Ribeiro
Viam-se todas as terças e sextas. Ela, ainda de dentro do ônibus, atraída pela estranheza de sua figura, o observava caminhando, solitário, na areia. Ele a acompanhava com a respiração suspensa assim que ela dava as costas à praia e entrava no prédio de fachada vermelha: seu andar de princesa, as pernas longilíneas deslizando, o... Continuar Lendo →
Aquilo que se impusera – Elisa Ribeiro
Sentou-se no tapete em frente à janela. As pernas dobradas, as mãos sobre os joelhos, os olhos da gata da vizinha nos seus. Fechou-os. Pensou em si mesma como uma fruta em ponto de tombar ao chão de madura ou uma hortaliça em fim de ciclo na terra. Usava essa imagem para fazer-se imóvel, o... Continuar Lendo →
JARDIM – Juliana Calafange
Do telhado do edifício mais alto, eu olhava para o jardim de petúnias lá embaixo. O ar estava pesado, nem parecia primavera. Me sentia feliz, mas o termômetro e o barômetro confirmavam que as coisas estavam bem acima do normal. Puxei a Rolleiflex para fotografar o derradeiro frescor da vida, mas antes que eu pudesse... Continuar Lendo →
O Velho – Fernanda Caleffi Barbetta
(Fabíola vai até a cozinha, onde a mãe lava a louça) Fabíola – O que o Tião queria a essa hora?Mãe – Tião?Fabíola – É. Ele não tava na sala com o pai?Mãe – Era o velho. (Fabíola senta-se à mesa) Fabíola – Que velho?Mãe – Parece que encontraram um corpo.Fabíola – Corpo, que corpo?Mãe... Continuar Lendo →
Em Bom Português – Ana Maria Monteiro
Ele é um amigo da onça e não joga com o baralho todo, por isso o convite cheirava a esturro. Mas aceitámos e fomos de pé atrás e com a pulga atrás da orelha. Chegados ao restaurante o ambiente era de bradar aos céus e cheguei a pensar que tínhamos enfiado o barrete, quando o... Continuar Lendo →