Enquanto passa fio dental nos dentes, Dr. Peixoto observa sua imagem no espelho. O velho espelho do banheiro está lá desde que comprou a casa, fazem já 24 anos. É um bom espelho, ele pensa. Sempre fora bom para ele. Sempre refletira sua imagem com elegância e sutileza, embaçando os buracos resultantes da acne adolescente... Continuar Lendo →
ANTROPOCENTRISMO – Juliana Calafange
Em algum astro no remoto rincão do espaço sideral, surgiu uma espécie de seres que julgou dominar tudo aquilo que estava ao seu redor. Foi o minuto mais soberbo da história do Universo. Mas foi apenas um minuto. Rapidamente esse astro congelou e esses seres desapareceram. (Filósofo anônimo. Codinome: Nietsche) Que o Homem se sinta... Continuar Lendo →
PERSPECTIVA – Juliana Calafange
De qualquer maneira, de helicóptero, o desespero é mesmo tranquilo; o desespero e a tranquilidade parecem ser, aliás, a mesma coisa, quando vistos daqui. Gonçalo M. Tavares - Visto de helicóptero Uma velha senhora toma chá junto à janela do seu apartamento, como faz todos os dias às cinco da tarde. Enquanto bebe o líquido... Continuar Lendo →
JARDIM – Juliana Calafange
Do telhado do edifício mais alto, eu olhava para o jardim de petúnias lá embaixo. O ar estava pesado, nem parecia primavera. Me sentia feliz, mas o termômetro e o barômetro confirmavam que as coisas estavam bem acima do normal. Puxei a Rolleiflex para fotografar o derradeiro frescor da vida, mas antes que eu pudesse... Continuar Lendo →
FÉ – Juliana Calafange
A Bahia. Terra de muita luz e axé. Onde todos os santos se encontram, se cumprimentam, se abraçam, se beijam. E entre carinhos envolvem e protegem os que por aqui passam, mesmo que não fiquem, como eu. Acabaram as férias, me despeço desse pedaço do paraíso na praia, nas areias famosas de Itapuã. Gostaria de... Continuar Lendo →
Vício silencioso – Juliana Calafange
São vinte um dias do segundo mês da terceira década do milênio, e há algo muito estranho acontecendo. Desde o ano passado, o silêncio parece ter desaparecido. Falo do silêncio propriamente dito. Não é aquele silêncio de quando a gente acampava no mato, som de insetos, grilos, corujas. Falo do silêncio mesmo, total. Um silêncio... Continuar Lendo →
Culturar – Juliana Calafange
Cultura popular, oriental e haikai Samba do brasileiro ensandecido e seu forró arretado de doido Cultuando o culturar Pela via do dia-a-dia Que é a rotina ardente não descontente Dos descamisados desnecessariamente úteis Dos yogues urbanos ufanos Dos mestres de rua do mundo da lua Culturar é mistura do barro do morro do choro Da... Continuar Lendo →
E Deus Criou a Mulher (Versão não autorizada) – Juliana Calafange
Contam que Deus criou a Mulher ao mesmo tempo e da mesma matéria que o Homem. E por que isso? Terá sido o melhor projeto? O que se passava na mente do Criador? Não se sabe com certeza, mas existem muitas teorias. Sabe-se, por exemplo, que em algumas culturas, Deus tem fama de Ser... Continuar Lendo →
RENOVAÇÃO – Juliana Calafange
Nascida na capital da província, Akili fora para a aldeia ainda moça, para se casar com o filho do soba[1] local. Ao longo de trinta anos foi esposa dedicada, teve três meninos saudáveis e fez-se útil à sua comunidade, ajudando na lavra e também ensinando o português para as crianças, pois a maioria na aldeia... Continuar Lendo →
BALANÇO – Juliana Calafange
De olhos fechados eu inspirava, expirava, inspirava, expirava. E assim fui suavemente me entregando ao balanço. Leve. Volátil. Doce. A morte deve ser assim. Embalado pelo mar da tranquilidade, abri os olhos devagar. Santa Maria, Pinta e Nina navegavam soltas pelo teto e meus sentidos lentamente percebiam a fria superfície sobre a qual meu corpo... Continuar Lendo →
SHERLOCK – Juliana Calafange
Seu Egydio sempre gostou de histórias de mistério. Desde menino, devorava tudo que era livro de Agatha Christie, Alan Poe, Conan Doyle, Simenon e companhia. Chegou a fazer curso pra detetive, mas quando viu que era muito arriscado e pouco lucrativo, desistiu da carreira. Acabou fazendo concurso público e virou funcionário conformado do Departamento de... Continuar Lendo →
ARDÊNCIA – Juliana Calafange
Noite alta, madrugada ainda, a mulher abriu os olhos e logo reconheceu a necessidade encalacrada na garganta. Precisava falar da sua covardia. Nunca lhe ocorrera falar sobre isso, pois lhe causava vergonha. Sempre. Mas é que hoje aquela covardia estava ardendo muito, mais do que já ardera antes. Hoje ela inflamava e urgia. Geralmente chegava... Continuar Lendo →
AZUL – Juliana Calafange
Minha amada imortal, Sinto-me tão envergonhado. Disseram-me que hoje amanheceste triste, com o olhar diferente daquele olhar vívido que sempre tiveste. E que isso foi por culpa minha, por causa das minhas atitudes. Sei que me acusas, meu amor - e tens razão em fazê-lo! Meu erro foi tremendo. Eu menti, sobre ti, sobre nós... Continuar Lendo →
ANNUS FAUSTUS – Juliana Calafange
Dizem que a primeira coisa que a gente faz na virada do ano é o que a gente vai fazer o ano novo inteiro. Espero que isso não seja verdade. Já imagino o mundo cheio de gente bêbada, vestida de branco, vagando pelas ruas, ao som dos fogos de artifício, uma versão tosca de The... Continuar Lendo →
INSÔNIA ∣ Juliana Calafange
Alice olhou o relógio, duas da manhã. Numa noite normal já estaria dormindo há horas. Nunca foi de dormir tarde, nem na juventude – quando ia a festas sempre voltava cedo pra casa. Imagine se o velho ia deixar filha moça chegar em casa depois das dez! Talvez por isso estivesse passando por essa situação... Continuar Lendo →
UM REI NO PURGATÓRIO – Juliana Calafange
Virgulino Ferreira da Silva, aqui na Terra conhecido como o Lampião, Governador do Sertão, estava lá no Purgatório, fazendo a tal retrospectiva de sua vida, ponderando seus atos malvados e virtuosos, na expectativa de ser aceito no Paraíso, nos braços de São Pedro e do Padinho Padre Cícero. Tudo ainda estava muito confuso em sua... Continuar Lendo →
HORA ‘H’ – Juliana Calafange
Enquanto aguardava na fila, Feliciano tentava conter a ansiedade. Lembrava-se vagamente de ter lido em um livro que ela só atrapalha na hora H. Inspirar e expirar bem devagar, dizia o livro, acalma o espírito. Estava concentrado na respiração quando sentiu uma cutucada no ombro. – É sua primeira vez? – perguntou o cara que... Continuar Lendo →
Fome de Amélia – Juliana Calafange
Ela era magra, magra, magra, de marré marré marré. Era assim desde menina, o vento vai te levar, de tão magra, vara verde! Ninguém sabia como doía. Por dentro era Amélia, generosa e doce Amélia, que ninguém gostava, que ninguém sabia. Desde que os pais morreram emagreceu e ninguém mais gostou dela. Na escola,... Continuar Lendo →
Meu grito – Juliana Calafange
Precisava pular do peito e sair correndo. Urgia ganhar liberdade e ser ele mesmo, um grito com personalidade. Pulsava como uma borboleta querendo sair de seu casulo, como um jato de esperma tentando furar a camisinha, como um pássaro lutando para quebrar a casca do ovo. E depois de um esforço hercúleo, ganhou livre-arbítrio, me... Continuar Lendo →