Feliz Natal – Vanessa Honorato

O primeiro natal sem Artur. Não sabia porque ainda insistia em fazer essa ceia. Não tinha vontade de nada, tampouco convidados. A mesa estava posta como sempre esteve:  abastecida com comida, bebida, enfeites coloridos de vermelho e verde, velas, guirlandas. Para quê? Qual motivo de tanto empenho se ninguém desfrutaria com ela? A taça de vinho era sua companhia agora. Gelado, encorpado, cheiroso, do jeito que ela passou a tomar todos os dias depois do trabalho. Artur fazia falta diariamente, mas em datas especiais era pior. Podia ouvir o som da sua voz desejando-lhe feliz natal, ansioso para saber o que ela havia lhe preparado de presente, já que não compravam nada, todos os natais faziam presentes diferentes preparados com suas próprias mãos.

Sentou-se à mesa e acendeu as velas. Fez uma rápida oração e serviu-se da maravilhosa ceia que preparara. Quando levou a colher à boca, a campainha tocou. Quem seria? Não havia chamado ninguém e sabia que todos estavam ocupados com suas próprias famílias e amigos para se lembrarem dela. Aliás, nem tinha quem se lembrar, não tinha amigos, os familiares moravam a quilômetros de distância, e desde a morte de Artur jamais apareceram em sua casa.

Abriu a porta e espiou o lado de fora. Não havia ninguém. Provavelmente sua mente pregara-lhe uma peça. Voltou para a mesa, mas deixou o prato de lado e tornou a encher a taça de vinho. Lembrou-se do natal passado, quando Artur entregou-lhe seu presente. Um lindo colar feito em macramê, confeccionado com suas próprias mãos, desde então jamais tirara-o do pescoço. Janine não segurou mais e deixou que as lágrimas rolassem abundantes por sua face. Não era justo. Por que Deus fizera isso com ela? Por que levara seu Artur? Não podia viver sem seus abraços, seus beijos carinhosos e suas declarações de amor.

Enquanto as velas queimavam, Janine chorava e a garrafa de vinho esvaziava-se. A comida esfriava. Sem ninguém para comer.

Janine pegou no sono, ainda sentada à mesa.

Acordou com o som da campainha novamente sento tocada. Dessa vez não foi lá fora espiar, sabia que não havia ninguém. Todavia o toque não parou. “O que você quer?” Gritou sem mesmo se levantar da cadeira. O toque cessou.

Com dificuldade e um pouco trôpega foi ao banheiro. Precisava de um banho para acalmar a mente. Fazia muito calor, mas não chovia. Todos os natais ela se lembrava do quanto chovia, mas neste não. A água estava boa, relaxante. Começou lavando os cabelos, usava sempre o mesmo shampoo, o que Artur gostava. Janine teve a impressão de que alguém estava na casa, não ali no banheiro com ela, mas no seu quarto. Pode até sentir o cheiro diferente no ar. Vestiu-se rápido e um pouco mais sóbria, saiu do banheiro.

A porta do seu quarto estava aberta, a cama desarrumada. Tinha quase certeza de tê-la arrumado pela manhã, aliás arrumara a casa toda para o natal, montara a árvore com os enfeites prediletos de Artur. Mas podia também estar enganada, sua cabeça não estava funcionando muito bem ultimamente. Mas aquele cheiro… aquele cheiro não entrava no seu quarto há muito tempo, era o cheirinho de Artur.

Desconfiada, olhou em todos os cantos, até debaixo da cama. Não havia nada. Mas o ar estava pesado, sua pele arrepiada e as luzes começaram a piscar. Janine ouviu um barulho vindo da cozinha e correu para ver o que era. Seu coração pulava acelerado no peito, poderia ter entrado alguém quando ela abriu a porta do apartamento? A luz se fora de vez e a cozinha estava iluminada apenas pelas velas sobre a mesa. O som veio do fogão, que tinha acendido as chamas. Mas quem acendeu? Tremula, desligou o registro de gás.

Quando percebeu, na mesa havia mais um prato disposto e uma outra taça de vinho cheia. Janine sentou-se no seu lugar e olhou para o lado, onde aparecera o prato.

— É você quem está aqui, Artur? — Sua voz saiu distorcida, ela não sabe se por emoção ou medo. Era um sentimento estranho dentro dela, por um lado, queria muito Artur de volta, por outro, sabia que isso era impossível.

As chamas do fogão voltaram a se acender, fortes, altas, pareciam gritar com ela. Janine levantou-se assustada, como era possível se desligara o gás?

— Artur, pare com isso! Está me assustando!

As luzes piscaram, se acenderam por dois segundos, muito mais fortes que o normal, claras demais, machucando os olhos de Janine. Ela encolheu-se no chão e quando a escuridão veio de volta, viu de relance a silhueta de alguém movendo-se rápido para o interior do apartamento, mais precisamente para o quarto de Artur.

Janine, mesmo com medo, foi atrás, que audácia era esta? Ninguém entrava no quarto de Artur além dela. A não ser que aquele realmente fosse Artur.

Chegou devagar e espiou pelo corredor. A porta estava aberta, escancarada, como nunca ficava, nem mesmo quando Artur era vivo. Por que Artur mudara tanto nos últimos dias? Como ela não tinha notado essa mudança? Ela não trabalhava tanto tempo assim, não era o tipo de mãe que ficava o dia todo fora e via o filho só à noite. Não, muito pelo contrário, era professora na mesma escola que Artur estudava, ia e voltava de casa com ele. Mas nos últimos dias Artur passava seu tempo todo trancado no quarto e ela no seu. Por que não conversou com o filho? Por que não perguntou o que estava acontecendo? Não, não era tarde demais. Ela tinha essa chance. Um barulho forte veio do quarto, barulho de vidro sendo quebrado, enquanto ouvia-se um lamento doído que pareceu acusatório aos ouvidos da mulher. Janine encolheu-se no corredor, tapando os ouvidos com as mãos e gritando enquanto chorava.

Minutos depois, silêncio. Janine entrou no quarto e sentou-se na cama de Artur. A escuridão não permitia que ela enxergasse a bagunça que estava o quarto agora, as portas do armário abertas, as roupas jogadas no chão. A escrivaninha virada de ponta cabeça. Uma melodia começou a tocar baixinha. “jingle bells, jingle bells…” Janine chorou junto. O cheiro de Artur estava mais perto agora, ela podia senti-lo a centímetros de distância de seu rosto.

“Filho, por que você se foi? Você tinha apenas 15 anos, ainda tinha uma vida toda pela frente. Oh, meu filho, a mãe sente tanto a sua falta…”

“Jingle bells, jingle bells”

As luzes voltaram a se acender e no mesmo instante o cheiro de Artur desapareceu. Janine gritou um dolorido “não” e deitou-se na cama de Artur, abraçando os joelhos e chorando em desespero até adormecer.

Quando Janine abriu os olhos novamente, tudo estava escuro. Saiu do quarto sem tropeçar em nada, dando a impressão de que tudo voltara a seu lugar, ou será que nunca tinha saído?

Voltou à cozinha e tudo estava organizado, seu prato, sozinho, posto no lugar de sempre. Janine limpou o nariz na manga da blusa e com os olhos vermelhos foi para a sala. A janela estava aberta, a cortina branca esvoaçava tranquilamente. Sobre o sofá Janine percebeu um pedaço de papel que antes não estava ali. Sentou-se e o tomou em suas mãos, começou a ler com a luz da lua. Era a letra de Artur, mas o papel estava amassado e datado no dia de sua morte. Na despedida de uma carta, Janine entendera, afinal, que não fora um acidente.

Janine voltou para a cozinha, segurando o papel com força entre os dedos. Não mais chorava. Tomou a garrafa de vinho bebendo direto do gargalo. Voltou para a sala onde a luz da lua iluminava parcialmente e releu a carta de Artur. Olhou pela janela, sorriu e pulou.

“Jingle all the way…”

14 comentários em “Feliz Natal – Vanessa Honorato

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  1. A narrativa a princípio parece apontar para uma situação de viuvez mas quando o luto se revela ser pela perda de um filho adolescente, o impacto é contundente. A atmosfera de solidão e a exposição do sofrimento dessa mãe de forma progressiva criam um efeito de agonia crescente muito dramático e impactante. Uma história muito, muito triste, conduzida como muita competência pela autora de modo a provocar um efeito desolador no leitor. Parabéns, pelo trabalho, querida Contista. Desejo um Bom Natal e um Ano Novo muito inspirador! Beijos carinhosos!

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  2. Nossa, fiquei até sem saber o que pensar com esse fim tão bem escrito e impactante.
    Também pensei que Artur fosse o companheiro da narradora, mas aos poucos, revelou-se como filho. Um fantasma? Um drama familiar, com certeza. A vida moderna que induz cada um a ficar no seu canto, isolado, sem se comunicar de verdade com a família ou os amigos. Um adolescente que sofre sozinho e não enxerga outra possibilidade a não ser acabar com a própria vida. A mãe que não suporta a perda do filho e se entrega ao desespero e acaba também se suicidando.
    O conto é triste e lindo ao mesmo tempo. Muito bem escrito, com um tom de terror, suspense e muita dor. A narrativa prende a atenção do começo ao fim.
    Que o seu Natal seja muito mais feliz do que esse aí que você descreveu tão bem. Beijos.

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  3. Olá, autora.

    Aqui vc brinca com as previsibilidades na literatura, e até na vida. Primeiro coloca um personagem morto, forte, carismático e conduz a trama dando a nós a impressão de que se tratava do marido da protagonista. Depois descobrimos que era o filho. Depois vc nos faz imaginar que o seu conto vai ser um drama com ênfase nas lembranças, e vc nos joga um suspense sobrenatural. Achei bastante engenhoso. Entendi que ela se mata no final, mas achava que ela morava em uma casa. Enfim. Um conto que nos engana o tempo inteiro. Parabéns e um excelente natal.

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  4. Olha…
    Puxa…
    Caramba…

    Querida Contista, por isso gosto desse grupo. Quem disse que o Natal é alegre e cor-de-rosa. O Natal é, para muitos, uma data bucólica, de tristeza, que remete saudades e, por que não, faz encarnar loucuras. Acho muito válido explorarmos aqui todas as facetas.
    E tu fizeste muito bem.
    A loucura de uma mãe deprimida decorrente da saudade do filho suicida. É 100% triste, mas a vida não é 100% alegre.

    Que o nosso Natal possa nos remeter a mais esperança e amor, né!?
    Vamos cuidar de quem amamos, vamos estar juntos.

    Um maravilhoso 2020 para ti!

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  5. Querida Contista,

    Tudo bem?

    Seu conto me chama para a questão da construção da narrativa. O jeito de ir entregando a história aos poucos é o ponto forte deste trabalho. Primeiro, o leitor descobre quem realmente morreu, depois, chega a pensar que a morte a que você se refere é metafórica e que haverá uma redenção (ao menos assim foi comigo), mas não.

    Outro ponto que me chamou muito a atenção foi o “espiral de loucura” em que a personagem é lançada. É assim mesmo… A mãe que perde o filho não sabe se é dia ou noite, se comeu, se tomou banho, se quer viver…

    Ainda é difícil para mim falar sobre essas questões. Não perdi um filho, mas um neto (que é um filho duas vezes, dizem), e presenciei meu filho e nora em sua dor…

    Já disse aqui que parece que os contos trazem todos um pedaço de mim, de nós. Com este não é diferente.

    Parabéns pelo trabalho forte.

    Desejo um Natal de muita luz e amor para você e sua família.

    Beijos
    Paula Giannini

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  6. “Artur fazia falta diariamente, mas em datas especiais era pior.” e “Janine pegou no sono, ainda sentada à mesa.” – Essas duas frases mostram o grau de solidão da protagonista e a relação entre essa solidão e o espírito de Natal.

    Há claramente trabalhada no texto uma rede figurativa que leva ao tema do desespero e do suicídio, porque tudo estava previsto, tudo insinua a ânsia, a frustação, os efeitos da solidão e a necessidade de ruptura, de evasão.

    Parabéns pela técnica narrativa em que apresenta esse quadro de previsibilidades surpreendentes, impactantes e tristes.

    Que seu Natal seja feliz e povoado, não de fantasmas, mas de todos seus entes queridos. Beijos.

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  7. Olá, querida amiga Contista!
    Que conto triste e desesperançoso… Uma vida que chega ao limite… Eu não consigo imaginar a dor de perder um filho… Imagino que não sobreviveria para chegar a esse nível de dor, onde não há mais opções…
    Muito bem escrito, as cenas chegam a doer na gente… Parabéns e boa sorte! Feliz natal! Bjooo

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  8. Meu Deus!! Que tragédia!! Muito bem conduzida!!
    Surpresas a todo tempo que vão apertando o coração, na hora do ghost, juro q me arrepiei os pêlo tudo!! rrs
    Parabéns, Contista

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  9. Olá, Contista!

    Um conto dramático com doses certeiras de mistério. A gente acha que se trata de um fim de relacionamento, depois de uma viuvez e por fim era o luto da perda de um filho.

    Muito forte o texto, muito triste e nos tira um pouco da zona de conforto. Afinal, natal parece sempre bonito nos filmes e comercial de TV, mas é uma data que desperta ainda mais a solidão e melancolia de quem sofre. É bom olhar para essas pessoas, ficar atentas.Tanto pelo filho adolescente que se matou sob circunstâncias inexplicáveis, quanto pela mãe, que está sozinha no natal depois de perder o filho. Ninguém poderia estar ali por ela? Vida real.

    Parabéns, feliz natal.

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  10. Um conto impactante, muito real apesar do tom sobrenatural que aos poucos toma conta da trama. Um tema tão presente no nosso cotidiano, infelizmente cada vez mais real e cada vez mais tirando a vida de gente tão jovem, já perdi alunos que foram meus aos 9, 10 anos e que depois soube que no Ensino Médio tiveram o mesmo destino de Arthur… E depressão é um tema que é tão conversado na escola, mas o que falta, afinal? Sinto que cada vez mais estamos falhando… E no conto você transmite essa solidão, esse desespero de perder um filho, principalmente ao se dar conta de que não foi acidente e se pergunta por qual motivo… Essas datas são muito complicadas para quem está ferido por algo similar ao narrado que tenha acontecido… Obrigada, Contista, por esse texto e pelas reflexões. Feliz Natal, um 2020 cheio de paz, luz, inspiração… ❤

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  11. Oi, amiga Contista!
    Seu conto foi um dos primeiros que li…uau, que conto denso, forte, dramático.
    O final me surpreendeu, pensei que Artur fosse marido da protagonista, depois que tivesse mesmo morrido de acidente.
    A revelação, seguida do suicídio da mãe do menino me arrepiou….Aquela sensação de cura, que não virá…é riste, tão triste.
    Mas nos resta a esperança e meu desejo de que lá no fim do túnel exista uma luz, a verdadeira luz.
    Feliz Natal e um 2020 sensacional pra vc e sua família,
    Bjokas!!

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  12. Boa noite, Contista!
    Então, sacanagem deixar esse suspense no ar, hein? Queria saber as motivações do Arthur 😕
    Bem, o conto tem atmosfera de tristeza e desolação. A situação descrita é horrorosa de ser pensada e vc conduziu tudo bem para repassar essa sensação enlouquecedora. De início achei que era uma esposa em luto, mas depois as coisas esclareceram.
    Queria mais.
    Parabéns pelo conto.
    Boa sorte.
    Feliz Natal!

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  13. Olá Vanessa. Já não venho a tempo de lhe desejar um natal feliz, mas estou certa de que terá sido, ao contrário do de Janine, tão sofrido e um sofrimento tão bem narrado. Caí nas armadilhas que montou (caio sempre, pois é assim que gosto de ler, deixando o autor desfiar o novelo) e a morte do filho foi uma surpresa que começou nos quartos separados. Penso que Janine adormeceu e sonhou tudo isso, mais por conta das críticas que se insinuam, que mão não se sentiria culpada? mas, mesmo supondo que se pode voltar do mundo dos mortos, que filho adolescente suicida voltaria de lá para culpar a mãe? O suicídio é a solução em muitos casos, pareceu-me lógico no caso da mãe (seria eu diferente? não o creio) e com toda a certeza evitável no caso do filho, mas para isso seria preciso furar a carapaça em que os suicidas se encerram previamente, a mãe viu a carapaça mas não percebeu, nada mais natural. Um conto muito bom, que prende a atenção do início ao fim.
    Um maravilhoso ano de 2020 para si. Beijos.

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  14. Não sei o que dizer. Talvez não tenha nada para ser dito. Só um… uau! Fiquei de cara com isso, mas é pelo impacto que esse texto causou. Essa tristeza e, ao mesmo tempo, raiva de você por estar me provocando esse sentimento de desalento. E isso é maravilhoso. Obrigada!
    Texto muito bom. Parabéns!
    Beijos e abraços carinhosos.

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