Os olhos dela esperavam, noite a noite, a rouquidão do último apito longo. Só anoiteciam de vez lá pelas onze e quinze. Uma última olhada pela greta da veneziana que era limpa por dentro e cinza por fora. O feixe de luz vindo da locomotiva parada lá atrás, decadente, esticava, esticava (…) até não poder mais, e morria, todo dia, de frente à casa amarela, nos últimos ferros do trilho interrompido. O que ansiava mesmo, e há tempos não fazia, era ouvir o assovio longo e floreado, aquele que os maquinistas folgazões produziam para mandar embora seus amores e amargurar ainda mais os corações. Corações de todo dia, abanando as mãos tristonhas com os sapatos gastos sobre o piso caracachento da estação. Distintos, todavia, os corações de hoje dos do dia predecessor, cada qual com seu próprio dissabor.
Só que desistiram dos trilhos! Bem ali, de frente da casa que já foi amarela e viva. “Dali em diante é à pique demais pra subir trilho de trem”, dizia pr’mais de 40 anos o encarregado pançudo dos bigodes que cobriam a boca. Mais proveitoso seria buscar gente de manhã, deixar de noite, e dar a volta pelo outro lado do morro, no rumo do Carmo, onde as curvas da estrada baixa acompanhavam as poucas águas do corregozinho resiliente.
O velho pai maquinista. O chegar a cada cinco dias com um bolso empanzinado de pequeninas rochas negras brilhantes. No outro bolso, balas de goma. Uma amarela, uma azul, uma verde, outra amarela, enroladas no saquinho plástico retorcido nas duas pontas. No rosto, o riso estalado cortando a face cinza das trilhas quando via na janela os olhos felizes da menina Prado.
Uma pedrinha negra é deslocada. Rola, trisca, bate, cai desde a beira do velho trilho até parar no cimento embaixo da janela. O vento. Só o vento. Ela senta-se na cama e escora as costas curvadas na cabeceira. É quinta, dia de quarto, do mistério da transfiguração. Segura firme em cada conta para a força da mão não deixar abotoar os olhos.
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― Ei! Abre aqui. Menina Prado, abre essa janela! ― escutou segredar a voz apressado-entrecortada do Carlos.
― Que foi? O que tá fazendo aqui a essa hora? E, “menina”(…) Carlos, só você mesmo pra me chamar desse jeito antigo. Tô mais corocada do que esses trilhos sem utilidade aí atrás.
― Autocomiseração, minha cara, pura autocomiseração. Mas, aqui! É sobre essa trilhaiada velha mesmo que vim conversar. Tá mais que na hora de arrancar esse encosto onde não passa nada e fazer essa casa amarela tremer de novo.
― Não me diga, meu amigo! Acabou por se cansar da minha vida besta também? Achou leve carregar o mundo nos ombros e agora quer remover trilho? Sua despreocupação me diverte muito, sabia? ― respondeu num riso relaxado, levando para trás o cabelo lisíssimo de douradas mechas brancas.
― Despreocupado, eu? Eu que vivo num assoberbamento danado naquela repartição. Abre caixa, fecha caixa, digita papel, apaga papel, copia papel. Não aguento mais ver papel. Queria mesmo era escrever na nuvem e deixar por lá. Quem quiser ver, que suba! Pois bem, menina Prado, quero te dizer que nós vamos finalizar com esses trilhos que deixaram aqui estorvando a sua vista. Pelo menos vai passar trem. Bem sei eu que você vive sonhando em acenar dessa persiana esquecida. Vai acabar morrendo, e aí já viu, né? Morte é um trem danado de categórico, dos mais que existem. E subitâneo! Você bem sabe.
― Uai, Carlos! Agorinha mesmo eu era menina, agora já tô na beiradinha? Você além de despreocupado, tá ficando impreciso.
― Já falei que era pura comiseração, já falei. E olha, veste aí uma roupa mais abrigada e vem pra fora porque os homens já se acercam e nós só temos essa fração de noite.
Foi quando os olhos dela, já pelos anos inconfiantes, avistaram fileiras de homens nos rumos da estradinha do Itapecerica. Estrada estreita, esquecida como o velho trilho de trem, e ela. Vinham armados de escavadeira de mão, enxadões, cigarros fumegantes e chapéus de abas curtas como não se usam mais. À frente, um gigante de branco, de moldes bem cortados, conduzidos por uma borboleta negra acertadamente posta.
― E vê se não é o Rosa? ― embasbacada de vez na visão da noite.
― Não prescindiria eu de tão grandiloquente oportunidade, minha cara Madame Prado ― e tocando-lhe o dorso direito da mão com o calor do lábio recém-fumegado.
― Pois, Rosa confessou-me que chegou de rodear o mundo com a cabeça empesteada de ideias e acabou por introduzir-me nessa empreitada ― disse Carlos enquanto tirava da pasta com dizeres de governo um rolo de planilhas e mapas de engenharia.
― Decerto ― continuou Rosa. ― Faremos uma linha predisposta.
― A quê? ― indagou a menina madame.
― Ao céu, pois que não!
― Minha virgem santíssima! Ou eu tô doida ou tô no quarto sono, quarto mistério (…) ah nem sei mais. Preciso de um belisco com máxima ligeireza.
― Não, que sua pele não tá mais pra isso ― acudiu Carlos. ― Te aquiete porque Rosa é assim mesmo. Ele vem de dez em dez e chega ocupando a era todinha.
― Ah! Meu afamado Carlos. Logo tu, o que subverte montanhas e mares sem amover-se do desconfortável assento reparticionári Sei bem que de pedras entendes a contento. Pois, vamo-nos a elas ― e voltando-se aos homens que aguardavam suas primeiras ordens. ― Levantem homens de muita fé! Alteiem mais essa base porque os trilhos têm que sobrelevar ― dizia e indicava com as mãos a altura final daqueles trechos inconcebíveis.
― Mas, Rosa! Com minhas mais respeitosas escusas, sou filha de maquinista, neta de maquinista, irmã de quem morreu remendando engrenagem de trem. O bicho não sobe morro, meu caro! Só se lá pelo mundo pra onde tens ido, e que de igual maneira, mantenho minha dúvida, ou de outro modo não chamá-lo-iam trem, mas por aqui não, nunca meus olhos viram.
― Não se apoquente, menina Prado ― interferiu Carlos. ― Lembre-se de que Rosa tem comichões pela imaginatividade. Sabes que o trivial dá-lhe nos nervos e tira-lhe o pulso. E eu não caí em presepada alguma, porque nessas não caio mais. Já sou velho demais pra supetões. Mantive, como costume adquirido pelo avançar da maturidade, esses planos numa gaveta por meses, pra dar tempo do que é fogo se esfriar e da loucura tomar assento. Pois, então, garanto que é plenamente fazível. Pra nós é, pra outros, sei lá, ninguém sabe ― e acabando-se em risos ao lado do gigante Rosa que mantinha um branco impenetrável àquela cinza em derredor.
Bate pedra, arranca trilho, remove terra, aterra fio. Num exceder de sons e vozes, os trilhos velhos saíram à força das madeiras podres, e no lugar, novos em folha e em metal, num brilho dourado como as das mechas da madame.
― Nas Minas de ferro, dos trilhos, do trem.
Das faces cinzas, das viagens, nas trilhas.
Se quebra pedra, desprende o ouro, debate o vento.
Dispersa o vento, o ouro, que o trem carrega, naquelas pedras
― cantarolava Carlos, enquanto ligava os pontos na sua planilha já rabiscada, e emendou: ― Cantem meus obreiros dos trilhos, pois é cantando que o sobejar do suor molha mais doce a terra ― repetia ele em meio aos homens aos quais a menina madame não reconhecia rosto.
― Nas Minas de ferro, dos trilhos, do trem.
Bate na pedra que o ouro já vem.
Bate na pedra, bate na pedra,
Bate na pedra que ouro já vem.
― cantavam aqueles homens em uníssono, enquanto a menina Prado via subir o inominável. Sobre uma armação de madeira fina, subia peça por peça de um dourado que espalhava uma luminosidade calma por toda a vizinhança dormida. O pó dourado plainava sob o bater ritmado dos homens sem rosto. O de Rosa, nevoado pela fumaça de fumo constante, fitava a menina de longe, com vezes de contentamento.
Carlos corria e indicava, falava e corrigia, media e apressava.
― Vamo que já é quase hora. O fim da noite é como o fim da vida. Não espera hora e o que mais que seja.
A menina madame viu desenhar-se o mais ultrajante espetáculo em desfavor da normalidade que todas as Minas já viram e veriam por muitos tempos. Do estrepitoso mover no meio de uma vizinhança em silêncio e esquecida, trilhos dourados escalavam o ar rumo a uma estação final última e improvável, mas que ela desconfiou existir. Um outro gigante de apito alegre surgiu vindo da estação velha, instalada há poucos metros da casa, da qual nunca vira trespassar trem algum. A locomotiva era negra com fiapos dourados que circundavam aquelas formas alterosas. E vinha aos olhos de todos. Os vagões irrompiam, um a um, somando-se a ela, radiantes, com letreiros cor de ouro num desenhar contínuo, devolvendo à menina mulher as rememorações daqueles anos.
Viu então quando Rosa embarcou primeiro. Curvou-se a meio corpo no cumprimento dos eruditos. 67 era o número pintado naquela portinhola. Dois vagões depois foi a vez de Carlos. Passou as mãos pela careca quase completa, abriu os braços como quem abraça todas as Minas e confidenciou por último:
― Ah! Quanta inveja tens tu Horizonte? Que vês ao redor, do alto, do cume dos teus montes, o trem e a brisa, que circundam, e vez e outra te passam e te douram, te encantam e partem.
Olhou-a com olhos de afeto. Acenaram. Ela acenou. Não se via mais homem, chapéu algum. Ouviu então o ressoar do apito alegre, banqueteador, vindo do mover das mãos de um outro homem, cujo afago doce seu coração tanto conhecia, que tinha os bolsos empanzinados de negras rochas brilhantes e o riso estalado, para os olhos jubilosos dela, cortando o pó dourado do rosto.
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Notou que o som festeiro desconfigurava na medida em que adentrava-lhe um outro, seco e rouco. Voltou a reconhecer a velha dor de cada pedaço do corpo gasto enquanto remexia-se para ajeitar a coluna e o pescoço endurecidos por horas de sono mal-ajeitada. Os primeiros raios entravam, não convidados, carregando o brilho da poeira cinza de todo dia. O trem chegou na estação. O velho. Na velha. Foi até a persiana de greta aberta e reviu, o interrompido, mais pra cinza, mais pra velho, mais pra nada serve. O cotidiano. Ele. Lá.
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Quaisquer semelhanças com pessoas, lugares, mundos, gênios e anjos, não passam de puro exercício da mais arrebatemática admiração.
Já conhecia este texto maravilhoso. Quando li pela primeira vez, não compreendi as referências como deveria. Hoje o acho ainda mais sublime. Parabéns, querida contista.
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Que alegria receber seu comentário, queridíssima Fê.
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