Lua Cheia (Renata Rothstein)

1851

Naquele outono de 1851, Samira e Tobias casaram-se às escondidas, tendo como testemunhas o céu, as estrelas e a lua.

Amavam-se de verdade, corpo e alma, desde o primeiro instante em que se viram.

Tobias Feijó era um forasteiro, viera dos lados do sul para fazer a vida em Santana de Matapi.

Samira era de tradicional família cigana e foi banida por amar Tobias, um gadgé.

Foram expulsos e renegados, ficaram dias sem teto, comendo quando podiam, vagando pelas estradas em busca do lugar, onde enfim viveriam felizes.

Dizia-se, de boca em boca, que só haviam descoberto o local que viria a ser chamado de Lourdes após um rito feito por Samira, invocando a Grande Deusa Lua.

Samira, olhos negros e profundos, de quem sabe mais do que fala, esperou pacientemente a noite de lua cheia e fecunda, e então saudou a grande Mãe Lua.

Tobias apenas observava. Gostava dos costumes da mulher.

Samira dançou em frente à fogueira, sentindo nas veias o amor pela vida. Fez o ritual que aprendera com seus ancestrais, entoou seus cânticos.

Repetia “a flor, a erva, a fruta boa, é a Deusa que te abençoa. Para onde a água correr, jogue uma pedra para tudo ver…”

Finalmente olhou para o céu e surpreendeu-se ao ver que já amanhecia. Sorria, plena. Estava feito.

Daquele dia em diante toda primogênita que trouxesse uma marca de lua cheia na pele casaria de forma inesperada, com alguém que ninguém suspeitava.

Assim como acontecera com ela.

Era um pacto entre a cigana e a Natureza, para que jamais fosse esquecido seu casamento por amor, sua expulsão, sofrimento e dor, até que encontrasse seu paraíso na terra, a promessa que trazia no coração.

Segurou a mão de Tobias, leu mais uma vez as linhas tão suas conhecidas. Fixou o olhar triste do marido e prometeu que ainda naquele dia encontrariam o lugar prometido pela Deusa.

Mais tarde caminhavam mata adentro, envoltos pela neblina intensa e pelo orvalho que tornava tudo úmido e fértil, ouvindo o maravilhoso canto dos pássaros e o cheiro de mato. Subitamente a neblina cessou. Samira e Tobias detiveram-se, prendendo a respiração.

Estavam diante do lugar mais bonito que já tinham visto ou imaginado, em toda a vida.

Céu azul, árvores frutíferas, a colina rodeada de arbustos floridos, animais silvestres e uma pequena trilha que descia até a praia, de um azul turquesa único. Deslumbrante.

 “Aqui será criada nossa Lourdes”, dissera Samira, olhando triunfante para o marido.

Tobias construiu uma imagem em homenagem à Santa Sarah Kali, padroeira dos ciganos.

Samira tornou-se mãe. Ela e Tobias tiveram muitos filhos. Viveram juntos e felizes, até o fim.

E pouco a pouco a cidade foi crescendo.

Pessoas que perdiam-se pelas redondezas entravam na neblina e terminavam encontrando Lourdes. E assim a cidade cresceu, feita quase por mágica, com pessoas especiais que vinham ao encontro de seus destinos, ou melhor, eram por ele escolhidos.

O tempo passou.

1980

Mirela tinha alma de borboleta, olhos de fada, mãos de cura. Tudo o que ela tocava tornava-se mais vivo, mais intenso e mais bonito.

Naquela tarde caminhava pelas redondezas da casa, enfeitada com conchinhas do mar. Mirela dizia a todos que as conchas haviam sido um presente de uma sereia que ao aproximar-se demais da praia para ver os humanos, ficara presa no quebra-mar, nas redes dos pescadores.

Por sorte nenhum deles vira a sereia debatendo-se entre as redes e Mirela pode soltá-la, sem grande esforço.

Lígia, a sereia, nadou alguns metros mar adentro, sua bela cauda prateada refulgindo ao sol, vez ou outra.

Parou. Olhou profundamente para Mirela, na praia. Mergulhou e reapareceu, já na areia, respingando água na menina.

Estendeu as mãos com um belo colar de madrepérolas e as conchinhas, enquanto emitia o som mais belo que Mirela já ouvira. O temido e sonhado canto da sereia.

Telepaticamente a sereia agradeceu, comovida. Jurou amizade eterna e nadando para trás, virou-se e mergulhou de repente, sumindo no mar.

Mirela subiu o caminho até sua casa com o coração aos pulos. Esfuziante, contou toda a aventura daquela tarde aos pais, mas ambos entreolharam-se, sem acreditar na menina.

No entanto, a mãe sabia da história da cigana Samira, do pacto feito há mais de cem anos, e ficava perplexa toda vez que via o sinal de lua cheia nas costas da filha.

Tentava afastar aqueles pensamentos, mas tinha medo que fosse Mirela outra mulher que cumpriria a promessa feita pela cigana. “Ah, são só histórias”, tentava se convencer.

Mas Mirela era mesmo estranha. Dizia conversar com fadas, ficava hipnotizada olhando o céu, em noites de lua cheia.

A mãe chegava a temer pela sanidade da filha. Já fazia muito tempo daquela história de pactos e certamente tudo não passava mesmo de invenção do povo daquele lugar, distante e misterioso.

Assim, a vida corria sem grandes acontecimentos. Mirela cresceu, aprendendo a esconder seus dons dos olhos das pessoas comuns, procurando agir como todos. Tentava mesmo ser “normal”.

Mas jamais deixou de ver as fadas que entravam em seu quarto e a acompanhavam pelos passeios no bosque, onde costumava se isolar. Juntava as mãos finas e delicadas, e notava que delas saía uma luz verde, que crescia e ia se espalhando pelo bosque, pelas pessoas, para os animais, para toda a humanidade.

Em êxtase, Mirela podia ver o invisível, sentia que seu toque curava, transmutava sentimentos, viajava através de portais para outros mundos.

Mundos bonitos, sem dor ou ganância, mundos em que seus dons eram valorizados, onde não existia sofrimento.

Nessas horas pedia para não voltar, mas sem que pudesse evitar abria os olhos e estava sentada no meio dos arbustos, entre as flores e suas amigas fadas.

1986

Num belo dia de verão, no ano em que completou dezoito anos, Mirela caminhava pela floresta, quando tropeçou na raiz de uma grande árvore. “Estranho, nunca a notei aqui. Como pode uma árvore imensa e tão perto de casa surgir assim, da noite pro dia? Será que errei o caminho?”, pensou, olhando para o gigantesco e imponente baobá – e já ia pedir desculpas ao vegetal, quando suas almas entraram em sintonia imediata.

E ambos, fora de suas vestes físicas, flutuavam além do tempo e do espaço.

Além do mundo que podemos ver, o sagrado e a transcendência tomavam forma – e o amor de Mirela e do Majestoso Baobá tornava-se real.

Puros e em sintonia perfeita, os dois amavam-se. A união mais do que perfeita.

Mirela sorria e pensava que agora a marca de lua cheia em suas costas fazia sentido.

Ela e seu grande amor conversavam por horas, a sensação era de que se conheciam de outras vidas, de tantas infinitas vidas.

Noites e dias de felicidade, os apaixonados teciam planos para o futuro, nada mais importava.

Viviam o amor verdadeiro, tinham um ao outro, e isso era o suficiente.

Mas todo grande amor precisa passar pela prova de fogo, o sacrifício final.

Era o que a intuição de Mirela dizia. E estava certa.

Um dia a mãe de Mirela cansou de ouvir as histórias que a filha contava e imaginando que a filha estivesse louca – “apaixonada por uma árvore?!” –, trancou a moça em casa.

Dias e meses passaram-se, Mirela definhava a olhos vistos. Chorava e implorava, mas sua mãe estava irredutível.

O grande Baobá, que na verdade era um Rei, julgou ter sido mesmo esquecido por seu amor.

Fadas amigas de Mirela tentaram explicar o que tinha acontecido, mas Baobá não entendia o que elas diziam.

Chorava. Seus galhos erguidos para o céu clamavam por uma resposta. Suas raízes profundas buscavam na terra a força que perdia dia após dia, frente ao desconsolo.

No fim daquele inverno sobreveio um imenso temporal, o dia virou noite, os animais correram para suas tocas, todos ficaram em casa.

O Baobá Rei, olhos de resignado espanto, viu quando um raio atingiu seu tronco, na altura do coração.

Sentiu a dor lancinante e fechou os olhos. Aceitou seu destino.

Explodiu em chamas, enquanto lágrimas rolavam por seu tronco, o fogo transformando toda dor em amor, ainda maior.

Seu último pensamento foi para Mirela, sua rainha prometida, de quem havia sido separado.

Esqueceu de tudo, perdeu a noção de tempo e lugar. Já não havia espaço, pensamento. Nada.

Dias depois, a mãe de Mirela resolveu que já era hora de deixar a moça sair de casa.

Assim que se viu livre, correu para a floresta, para seu amor. “Vou explicar tudo e ele vai entender, vai saber que não tive culpa…”

Interrompeu os pensamentos, levando a mão até a boca, contendo o grito de horror ao ver os galhos retorcidos, as cinzas pelo chão, o tronco completamente retorcido e as raízes à mostra, mortas. Mortas!

Tentou desesperadamente usar seu poder de cura, mas não conseguiu. Baobá estava perdido para sempre.

Ajoelhou, pegando as cinzas com as mãos, lágrimas de infelicidade profunda rolando por sua face lívida, sofrida.

Tocou mais uma vez aquele que um dia fora seu grande amor, levantou-se, limpou as mãos no vestido.

“Também estou morta”.

Rumou para a praia, entrou no mar e foi avançando, até que não sentiu mais os pés tocando o fundo.

Não sentiu medo. Apenas rendeu-se àquele bem estar estranho e inesperado, logo após uma rápida falta de ar e tontura.

Sentiu-se puxada por alguém, olhou e como num sonho viu Lígia, a sereia.

Percebeu, surpresa, que estava respirando normalmente embaixo d’água, enquanto nadavam mais e mais para as profundezas.

Mirela, mãos dadas com Lígia, de repente deteve-se, ante o cenário que vislumbrava: uma verdadeira cidade feita de luz e energia cintilava, diante de seus olhos maravilhados.

Adentraram a cidade. À sua passagem sereias e tritões cumprimentavam-lhe, alegremente.

Enfim chegaram ao que parecia um saguão central, todo feito de cristais que mudavam de cor o tempo todo.

A sereia fechou os olhos e então o canto mais belo de todos os tempos fez-se ouvir.

Os presentes emocionaram-se e a compreensão da vida e da morte veio à mente de todos, de forma única, translúcida.

No centro do saguão, onde havia um altar de madrepérolas, a figura de Baobá Rei foi surgindo, pouco a pouco.

Lígia olhou para Mirela, que entendeu que aquele era o presente de gratidão pelo dia em que salvou a vida da sereia, presa nas redes.

Presente da Princesa Sereia, o amor venceu.

Na terra concluíram que Mirela resolvera partir, viver a vida do jeito que desejava.

Conformaram-se, enfim.

No céu, a cigana Samira sorria e dançava, ao ver sua história se repetir, com o mesmo final feliz.

Um amor inesperado, transmutado, purificado pelo fogo e abençoado pela água.

Mirela e Baobá eram agora sereia e tritão.

E o encontro de suas almas fez nascer milhões de estrelas e outras terras. E nelas fadas, árvores, flores, sereias e tritões, histórias de amores impossíveis, mas todos com finais felizes.

Entrelaçaram as mãos e nadaram juntos para a eternidade do mar, no encontro infinito com o céu, onde uma lua cheia e mágica brilhava, cúmplice e protetora, para todo o sempre.

Fim.

9 comentários em “Lua Cheia (Renata Rothstein)

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  1. Uau, Renata! Que fábula linda! Imagética, cheia de descrições poéticas, pungente… e com final feliz, ainda por cima?! Adorei!
    Parabéns!

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  2. Olá, Renata! Um conto que parece ser mesmo de fadas, muitas simbologias e um final feliz que nos encanta o coração. Adorei que o amor tenha vencido ao final! Beijocas.

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  3. Querida amiga. Você tem um grande talento para imaginar e produzir lendas. Parabéns pelo lindo texto cheio de importância para nós, mulheres e nossa sina de precisar lutar por tudo, não é mesmo? Andei bem ocupada com a cirurgia do Ralph e ficar cuidando dele na pós. Está tudo bem, viu? Beijos.

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  4. “O amor sempre vence” é a lição desta fábula repleta de magia e lirismo: a alma cigana, os pactos, as fadas, as sereias e a natureza. A trama traz, assim, todos os elementos clássicos do gênero: a mãe severa, o príncipe encantado e metamorfoseado, a profecia que repassa por gerações, a luta pelo amor, o final feliz. E, sobretudo, a Lua Cheia para canalizar energia e a magia.

    Texto inventivo, gostoso de ler, com bastante fantasia e uma linguagem simples, direta e elegante. Estilo e conteúdo se fundem com a perfeita amarração entre as partes.

    Parabéns, Renata, pela delicadeza e sensibilidade ao criar sua própria mitologia. Beijos!

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  5. Olá, Renata!

    Que bela inspiração! Gostei bastante como os elementos vão ganhando importância. É bonito, místico e tem mesmo tom de fábula. Dava uma peça de teatro bacana também. Parabéns!

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  6. Quanta criatividade, hein? Quando a gente acha que a história chegou ao seu ápice, suregem novas surpesas, novos encantamentos. Uma linda história de amor contade de uma forma bastante fantástica e inusitada. Miuito bom, gostei. Parabéns.

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  7. Querida Renata,
    Ando aqui muito envolvida com o Povo Cigano, então, grata surpresa encontrar o seu conto. Bem ao seu estilo, sempre com uma pegada social, este aqui tem gostinho de romance e aventura.
    Muito bom.
    Beijos
    Paula Giannini

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  8. Que fofo! Seria tão bom se fosse realidade… O amor sempre fará surgir grandes histórias , como esse conto, onde quem lê ainda pode até pensar que ele ainda exista… Bjs ❤

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