O dia estava nublado, mesmo uma menina de nove anos achou estranho aquele brilho vindo do fundo do lago. Ela estava triste, nos últimos três meses não conseguira chorar, mas o dia relativamente escuro lhe trouxe à tona as tristezas acumuladas. Mariana lembrava-se da mãe como se ela ainda estivesse presente, mas quando acordou e chamou por ela, para que lhe trouxesse chá de camomila como em todas as manhãs chuvosas, a realidade lhe soou como uma bofetada e ela percebeu que nunca mais tomaria chá de camomila com a mãe. Colocou seu casaco e calçou as botas. Correu para a beira do lago no fundo de sua casa.
Foi aí que percebeu a luz.
Era apenas um ponto brilhante no fundo do lago, mas não poderia ser raio de Sol, já que este não estava presente. Mariana levantou e aproximou-se da beira do lago, enxugando as lágrimas com o dorso de sua mão pequena.
Então ouviu uma voz.
“Mariana?”
A menina deu um passo para trás, assustada.
“Você está me ouvindo?”
Ela deu mais dois passos e caiu sentada.
“Não se assuste, menina”
— Quem está aí? — Gritou com a voz trêmula. — É a senhora, mamãe?
“Não sou sua mãe, Mariana”.
Ela não pôde evitar a decepção. Apesar do medo, teve esperanças de que pudesse falar com a mãe novamente.
“Eu quero o seu bem. Vim para ajudá-la”.
A menina levantou-se. Estava indecisa, não sabia se corria ou esperava.
— O que você quer?
“Já disse. Sei que está sofrendo e não tem nada de errado em chorar. Coloque suas emoções para fora!”
— Não posso! — Mariana já não sentia medo, sentou-se de volta à beira do lago. — Toda vez que fico triste, papai chora.
“É porque ele também está triste, querida. Você perdeu sua mãe, ele perdeu a mulher que amava”.
— Eu sei. É por isso que tenho que ser forte.
“Você é apenas uma criança, não precisa carregar nos ombros toda a dor dos adultos”
Mariana deitou-se de costas, a garoa transformou-se em um chuvisco típico de outono. Ela ficou pensando naquela voz, no seu tom doce e ao mesmo tempo forte.
“Escute-me. Irei cantar para você. Deixe-se embalar, deixe que a chuva lave sua tristeza, deixe que a água leve sua angústia. Apenas ouça”.
E Mariana ouviu a melodia mais tranquila e doce de toda a sua vida.
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— Mariana? Acorda! — O homem grande e forte não parecia mais que um menino assustado com a filha inconsciente nos braços.
José caminhava apressado pelo caminho estreito até sua casa. Em poucos minutos colocou Mariana dentro de uma banheira com água quente e aconchegante. Depois de sentir falta da filha, ele percorrera todo o castelo a sua procura. Desesperado, passou pelo bosque e pelas estradas ao redor. Encontrou-a adormecida, molhada e fria. Temeu que ela tivesse o mesmo fim da mãe e nunca havia sentido um temor tão grande quanto aquele.
— Filha, por favor, fale comigo!
— Papai? — Mariana piscou lentamente.
José respirou aliviado.
— O que estava fazendo lá fora com toda essa chuva?
— Desculpe. Estava — Mariana lembrou-se da voz, da luz, da melodia — só pensando na mamãe.
Pela primeira vez, Mariana falou da mãe para seu pai. José sabia que ela sentia falta de Beatriz, mas não sabia como ajudar. Na verdade, quase não a conhecia. Nunca ajudara em sua criação. Depois da morte da esposa, José dispensou os serviçais, restando apenas Mariana como sua única família. Em pouco tempo, perdeu tudo que tinha. Seus campos já não produziam, seu reino fora tomado, ele e a filha foram viver em um casebre que antes seria de um de seus empregados. Na verdade, ele já havia perdido o amor de sua esposa bem antes dela morrer.
José vestiu Mariana e colocou-a em sua cama. Não demorou, adormeceu.
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Mariana andava pelo bosque coberto de neve, tão branco que doía seus olhos. Ela cantava e dançava, era sua época favorita do ano. Sua mãe havia lhe presenteado com uma loção perfumada e lhe pedira para que jogasse algumas gotas no rio, para presentear a natureza. Chegando ao rio, agachou e observou seu reflexo na superfície. Mas, ao invés de ver seu rosto, viu uma figura, apesar de bela, estranha. O rosto feminino era prata brilhante e seus cabelos eram azuis. Seus olhos refletiam um brilho tão intenso que Mariana levantou-se assustada. A criatura ergueu-se lentamente de dentro do rio. Era pequena, não passava de poucos centímetros e flutuava na altura de Mariana. “Venha comigo… Venha comigo!”
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Mariana acordou assustada, ainda com o tom doce da voz ecoando em sua mente.
— Ir para onde? — A menina levantou-se, abriu a janela e viu que ainda chovia. Sem neve.
José cozinhou o último ovo para o desjejum da filha. Equipou-se com seu arco, flechas e facas e disse para Mariana ficar em casa que iria caçar. E pela primeira vez, não levou a garrafa de bebida.
Mariana descascou o ovo. Ele era azul e prata.
Ela não comeu.
Voltou para a cama, o sono a libertaria da fome.
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Quando Mariana despertou, José ainda não havia retornado. A chuva parara e ela resolveu voltar ao lago do bosque.
Algo estava diferente. Ela podia sentir. Sua intuição lhe falava para voltar e esperar pelo pai, mas aquele sonho não saía de sua mente.
Porém, ela não viu nada, apenas o lago.
— Ei! Você disse que ia me ajudar! — Mariana esperou. Não obteve resposta. — Você não passa de uma mentira! — Virou as costas e já ia adentrando pelo bosque quando ouviu.
“Estou aqui, Mariana. O que você quer?”
A menina voltou correndo, doida para ver a criatura.
— Onde está você? Deixe que eu a veja!
“Estou bem atrás de você”
Mariana ouviu a voz bem perto de seu ouvido, virou-se rápido, mas não enxergou nada.
“Aqui!”
“Aqui!”
— Pare de brincar comigo! — A menina cruzou os braços, fazendo careta.
“Tudo bem! Mas estava divertido!”
A voz foi ganhando forma, e o ser, antes pequenino, foi crescendo. A criatura com formas e rostos femininos cresceu até ficar do tamanho de Mariana.
— Uau! Você é linda!
De fato a criatura era agradável aos olhos.
“Eu sou você, Mariana. Eu reflito o que você tem dentro de si”.
— Como assim?
“Pode me chamar de Ondina, sou a criatura que controla as águas, estou presente onde há umidade, água limpa, nos mares, rios, lagos, como este aqui, onde sua mãe vinha me visitar”.
— Minha mãe?
“Sim, querida. Ela sofria muito, seu coração estava ferido. Ajudei-a diversas vezes, tentei até morar dentro dela para ajudá-la mais de perto, mas ela não me quis”.
— Por quê?
“Há coisas que ninguém pode nos ajudar, Mariana. Eu estou presente em todos os lugares, basta que você chame por mim. Se quiser que eu venha com mais rapidez, me procure no crepúsculo, ou decore sua casa com rosas e mirra, ou mesmo deixe que eu faça morada dentro de você, desde que em seu corpo esteja fluindo sangue bom, limpo, puro e agradável. A partir do momento que você o corromper com ódio ou rancor, eu não poderei mais ficar, tampouco lhe oferecer amizade e felicidade”.
Mariana chorou. Sentiu a dor que sua mãe carregava.
“Ou você pode vim morar comigo e pode tornar-se também uma ondina e ajudar pessoas que sofrem. Como sua mãe sofria”.
Mariana ficou pensativa.
— Poderei ver minha mãe?
“Ela não vive comigo, preferiu seguir seu próprio caminho”
— Então por que eu iria com você?
“Porque você poderia passar a habitar dentro de seu pai e ajudá-lo a deixar aquela bebida que está o matando. Você não pôde salvar sua mãe, mas pode salvar seu pai”.
Mariana ergueu a mãozinha para tocar a pele brilhante da Ondina, mas ela foi afastando-se devagar e Mariana foi atrás, adentrando cada vez mais fundo no lago. A Ondina começou a cantar, a menina fechou os olhos e se deixou levar pela canção. Sentia seu corpo leve, sua alma tranquila, não sentia mais fome e sorria. Junto com a voz melodiosa, ouviu alguém gritando seu nome. Tentou abrir os olhos, mas não conseguia. Sentiu a Ondina mais perto e tocou sua pele fria. Suas lágrimas se misturaram as águas do lago e ela deixou-se envolver pelo abraço da criatura, sentindo-se finalmente descansada.
Porém, a voz que lhe gritava era conhecida. Seu pai. Ele estava sofrendo. Ela precisava ajuda-lo! Com um grande esforço, conseguiu abrir os olhos e se viu dentro do lago. Ficou assustada, seu pai não a estava vendo.
“Por que você parou? Continue, venha! Estamos chegando!”
— Meu pai precisa de mim!
“Eu sei, e você poderá ajuda-lo daqui a pouco. Confie em mim”.
A figura da Ondina foi diminuindo de tamanho, afastando-se, chamando-a.
— Pai! — Mariana gritou o mais alto e conseguiu. — Pai!
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A noiva estava perfeita, todo o reinado estava presente. Este fora o casamento mais esperado da corte nos últimos anos. Mariana de tão linda, parecia brilhar. O príncipe encantou-se com sua futura rainha. Na hora do sim, Mariana acariciou a barriga, não contendo a ansiedade para conhecer sua filha Nicksa.
Uma linda história sobre a menina que perdeu a sua mãe, sofre e assiste à lenta degradação de seu pai, ausente desde sempre e agora entregue à bebida. O final surge de forma inesperada com um príncipe que será seu marido e pai de seus filhos, começando pela pequena Nicksa, as águas finalmente libertando-a da sua dor e dando um sentido à vida. Parabéns, autora.
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Uma decisão importante na vida de Mariana, como todas as decisões que implicam em mudanças muito bruscas. Ondinas, assim como os outros elementais, atendem nossos pedidos, mas quem pede precisa merecer. Um conto de fadas, afinal, com direito a um final feliz, muito digno.
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Um belo conto trazendo o elemental das águas – ondinas. Lembrou-me dos contos de fadas que lia quando menina e tanto me encantavam. A boa construção de diálogos fez com que a leitura corresse fácil em um ritmo gostoso. Uma boa história com final surpreendente (achei que a menina fosse morrer para o mundo, entrando no reino das ondinas) e um tanto misterioso. Dúvida: Nicksa seria filha do príncipe ou um fruto de alguma magia?
Parabéns!
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Olá, Contista!
Um conto de fadas, com uma ondina orientando a pequena e tão sofrida protagonista.
Olha, gostei muito do conto, é bonito e bem contado, só achei a explicação sobre a ondina um tanto didática, e o final em que a filha ajuda o pai decadente através de um casamento – ainda que por amor- não sei, tenho um pouco de medo desses finais em que a princesa é salva pelo príncipe.
Mas no todo, gostei muito ☺🌻
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Um perfeito conto de fadas. Ainda bem que Mariana decidiu ficar ao lado do pai, se ela partisse seria a ruína dele. Não sei se estou enganada, mas o nome Nicksa só apareceu no final. Seria o nome da ondina?
Parabéns pelo conto.
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Olá Nicksa, seu conto foi muito gostoso de ler, tudo muito bem ambientado e mágico. A tristeza da protagonista me tocou profundamente e a história tem um suspense leve que nos leva a querer ler mais. Não entendi o final. Me pareceu que a Ondina queria que a menina se matasse, claro que em um conto de fantasia, não seria suicídio e sim um renascimento, mas senti como se a ondina não fosse do bem, mas não ficou claro pra mim se ela continuou a entrar na água ou se ela desistiu e foi ficar com o pai. O final com o casamento e o bebê achei muito precipitado já que na história ela é muito criança ainda. O príncipe era o príncipe da água ou da terra? Desculpe se perdi alguma coisa.Mesmo com minha falta de compreensão do final, não tiro o mérito do seu trabalho que está esmerado e muito bem escrito! Parabéns!
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Olá Contista,
Tudo bem?
Já disse, redisse e vou repetir aqui para você. Estou muito feliz por participar desta dinâmica com textos tão diversos e incríveis.
Vamos ao conto.
A autora nos trouxe um conto de fadas. A menina órfã, cheia de dificuldades para enfrentar o mundo, diante de um pai que sucumbe à falta da mãe, encontra forças para ajudar a quem ama, e, como recompensa, encontra seu próprio lar. Na figura de uma pessoa com quem irá se casar, e, com o qual terá uma linda filha.
É interessante notar que o bebê no ventre da mãe está no mundo da água. Assim, fica a cargo do leitor, imaginar que a mãe, que um dia, na hora certa, ela reencontraria, segundo a criatura das águas, é a própria criança que a protagonista está gestando, transformando o texto em uma metáfora do eterno ciclo de amor e de renovação.
Parabéns, Contista.
Espero que este seja apenas mais um dos inúmeros textos que compartilharemos em nosso Blog.
Beijos
Paula Giannini
(11)982497839
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Um conto de fadas com direito a castelo, bosque, menina orfã de mãe, pai ausente e ninfa sedutora.Gostei da caracterização sutil, algo enviesada, dessa fada do mal que que apenas queria destruir a vida da pequena Mariana. Também gostei muito do final dado a história, a única ressalva que faço é que ele ficou um pouco brusco. Não o fato em si de a menina ter escolhido a vida, ter encontrado seu príncipe e estar grávida, mas a forma muito resumida como restou escrito. Um conto com muitas qualidades! Parabéns! Beijos!
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“O Maravilhoso sempre foi e continua sendo um dos elementos mais importantes na literatura destinada às crianças. Por meio do prazer ou das emoções que as histórias lhes proporcionam, o simbolismo que está implícito nas tramas e personagens irá agir no inconsciente da criança, atuando pouco a pouco para ajudar a resolver os conflitos interiores normais nessa fase da vida.”
A trama do conto exemplifica essa afirmação: a pequena órfão sofria pela morte da mãe e pela decadência do pai e do reino. A ondina a fez despertar, mostrando que poderia morrer ou voltar para o pai e ajudá-lo a superar a dor. E, foi isso que aconteceu e notamos no prólogo, o casamento da protagonista com um príncipe, o reino presente e a gravidez. A água que se renova; e como o ciclo da água, o ciclo da vida.
Leitura agradável e prazerosa, ritmo ágil, enredo simples, fantasia sutil e oferecendo ao público a possibilidade de se emocionar.
Parabéns! Gostei muito. Beijos! 🌺💖
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Um conto de fadas primoroso, pelo tom intimista que deixa a leitura fluir com leveza, pelo drama de encarar a morte e as perdas, comum a todos nós, pelo simbolismo da água, presente ao nascimento do feto que está sendo gestado e ao renascimento, é preciso que a personagem morra para que ela renasça ondina, coisa que ela se recusa a fazer. Não se sabe se ela conseguiu demover o pai do vício do álcool, pois se trata de um conto de fadas moderno, onde a noiva está se casando grávida – o que deu um toque todo particular. Bom trabalho e bom desenvolvimento.
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Querida Contista!
Obrigada por me propiciar mais uma leitura de um conto teu!
Esse desafio foi ótimo, né!? Adentramos em um mundo verdadeiramente fantástico!
Sobre o teu conto, AMO história com castelos! Ponto alto o fato de a criatura fantástica fazer parte (ou querer fazer parte) da personagem principal, conquanto possamos entender a ondina sob um aspecto psicológica no conto.
Talvez ela simbolize uma morte tranquila, uma saída á fome e depressão…
Mas eu recebi o conto como uma espécie de conto de fadas, com certo tom dramático e de terror. E a sensação aumentou ao término, com o final feliz clássico das histórias para crianças.
Parabéns!
Grande beijo,
Sabrina
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Olá!
Um conto muito bem escrito com uma ótima ambientação, engraçado que eu não percebi que era de época estilo conto de fadas até dado momento. Aí fiquei um pouco confusa, mas logo me adaptei.
A história é bem narrada, o leitor cria empatia pela menina, seu sofrimento o pai. A Ondina foi uma incógnita pra mim, desde o surgimento fiquei com um sentimento que ela não era uma coisa boa, que tentava a todo custo levar a menina. Tanto deixando ela na chuva quanto afogando-a no lago. Eu sinto que perdi algo no meio do caminho, não sei se a menina sobreviveu. O final foi confuso, abrupto. Então acho que não sei se entendi muito bem rsrs. Fora isso é um ótimo conto, parabéns.
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Muito bacana ver um conto de fadas que traz até certo ar folclórico, pois pra mim a Ondina lembra muito uma Iara, embora esta última encantasse homens, segundo a lenda. O final ficou um pouco nebuloso, talvez por estar abrupto, mas gostei da fuga do lugar-comum de ela se casar grávida do príncipe, que ficou adequado ao texto, porque geralmente eles só chegam no final, não é? RS… Parabéns pelo conto de fadas, não esperava ver algo assim nesse desafio. 😉
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Olá!
Um meigo conto de fadas! adoro! hehe
Esses elementais bem podem influenciar em coisas estranhas, né hein?!
Pobre José!!
Parabéns pelo conto, Contista!
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Uma leitura que brinca com o fantástico e com os contos de fadas com figuras muito belas. No meu entender a Ondina não era uma pessoa exatamente boa ou má. O conto deixa algumas pontas soltas, ou, talvez eu que não tenha entendido. O final feliz foi muito bonito, e amenizou todas as agruras pelas quais Mariana passa. Parabéns e um grande abraço.
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