Resultado Difícil de Prever (Fheluany Nogueira)

 O que quer que tivesse esperado viver naquela noite escura e fria em que saíra de casa de pijama, não era aquilo.

 

— Para o Shopping! — a mesma voz que me chamou dizendo que ele e o amigo estavam voltando do restaurante para casa. Nove horas de uma noite chuvosa. Como assim? Agora querem fazer compras? E a volta para casa? E como fico com a empresa?

— Claro que sim! —respondi. Estava dormindo quando ligaram e não me dei ao trabalho de tirar o pijama; vesti camiseta e jeans sobre ele. Ainda peguei uma jaqueta. — Tonta, eu. Por que fico encucada?

Pelo retrovisor, observava os passageiros, calados no banco de trás: um jovem, com muita acne no rosto; outro, musculado, com ar de indiferença. No Walmart, o mais moço ficou comigo no carro, talvez para assegurar que não os abandonaria. Na volta:

— A casa da tia fica perto. Leve a gente até lá, por favor — segundo sinal de alerta me piscava na mente.

Rodamos um pouco por ruas escuras, quando apontaram uma pequeno e sujo prédio.

— Pare aqui! — um ordenou. Eu não tinha como saber que estavam desesperados atrás de celulares, roupas e um plano B. Quando desliguei o Fit, forçaram-me a passar para o banco de trás e o corpulento me apontou uma pistola:

— Bum, bum, princesa! — em tom agressivo, entregou a pistola ao colega e bateu a porta com estrondo. Palpitação! Desorientada, em nefasto território construído pelo medo. Mas, paralisada, sem reação… convencida de que ia morrer, só não sabia como nem quando.

 

Era uma pensão. No quarto lotado, passei a espreitar os dois: o que desconfiava ser o líder, esparramou-se em uma das duas camas, a arma debaixo do travesseiro, determinou que eu deitasse na outra. O jovem ficaria no chão, perto da porta. Não havia como fugir, nem distorcer a realidade. Impossível dormir!

Pela manhã, o café desceu amargo pela garganta, tão amargo quanto o noticiário na tevê, que mostrava a fuga da penitenciária, um dia antes.

— Ei — gritou o espinhento — somos nós! — As fotos do arquivo da polícia encheram a tela. Então, soube que havia uma imensa caçada humana atrás dos colegas de quarto. Acusados de participar de um tiroteio, com mortos, Daniel Teixeira e Nivaldo Silva, este conhecido por torturas, assassinatos, tráfico.

Precavidos com a possibilidade de notarem o meu desaparecimento, os fugitivos decidiram que precisavam de outro veículo.  Daniel pegou uma van, que acharam na internet, para test drive e fugiu. Os dois foram a um salão para mudar a aparência: Daniel raspou o cavanhaque e tingiu o cabelo de ruivo, o outro tirou o bigode e toda a cabeleira. Teriam pago? Depois, cada um pegou um dos carros. Fiquei com Daniel, que, mais descontraído, enquanto dirigia o meu Fit, perguntou sobre mim:

— Estranho, moça no Uber. — Desconfiava de que a conversa fosse um jogo, com resultado difícil de prever, mas acabei me abrindo:

— Achava que a gente ia escolher emprego. Chegaria num canteiro (de obras), mostraria o diploma, saía contratada. A expectativa era enorme. Quando me formei, veio o baque. Promessas, nenhuma vaga, dinheiro pouco. E aqui estou! Carro financiado e trabalho noturno —opção que parecia ter me levado àquela difícil situação, além da solidão.

—E você? O que conta? Parece um homem sem amigos. Deve doer…

Olhos lacrimosos, Daniel confessou que odiava o modo como seus crimes o deixaram fora da sociedade. Isso que mais doía: não ser aceito. O pai não falava com ele, e a mãe se dizia envergonhada. Ao sair de uma de suas prisões, pedira a um casal, que o visitara, que fossem à casa da mãe — “porque quero que ela saiba que também tenho amigos normais“. Ele nunca se recuperaria perante a família — escutei-o reticente, sabendo de que, às vezes, as pessoas precisam mais ser ouvidas do que consoladas. Esse era o começo.

 

Daniel entrou num outro hoteleco, onde encontramos Nivaldo. Até tarde da noite, os fugitivos riram, beberam e fumaram. Na tevê pediam por informações que os levassem à prisão. Eu, outra noite, desnorteada…

O domingo nasceu, e os sequestradores pareciam mais distantes que de costume. Um tom de urgência na voz. Aquele clima me inquietava, um ar especial de tensão, opaco, grosso. Logo, um bandido passou a gritar com o outro. O quarto ficou tenso e pequeno. Senti que a discussão era sobre mim e comecei a achar que os homens deviam ter percebido que, se me matassem, seria mais fácil fugir.

— Bum, bum, princesa! — Nivaldo ironizou apontando em minha direção. Se insistisse em falar, ele se impacientava. Simplesmente me olhava e eu podia ver raiva nos olhos. Enganava-me ao esperar salvação?

 

No dia seguinte, saímos na van. O passeio começou sem objetivo e, Nivaldo virou a direção abruptamente, decidindo que iríamos para o litoral. Pareceu-me ainda pior quando estacionaram perto do mar. Imaginei que tinha sido levada ali para ser executada. Eu suava. Respirava com dificuldade. Acreditava que já estava morta. Em susto, tentava estabelecer contato entre o que eu fora e o que ocorria. Insistia, em angústia, que havia de restar forma de me safar. Chegava à plena consciência da situação, aquilo foi me dando um desespero sem tamanho.

Nivaldo fez com que posássemos para fotos, com o mar, a praia e o píer como cenário. Fez selfies, agia como se fôssemos amigos. “O que ele está fazendo?” pensei. E então… nada. Não entendi a reviravolta. Os três entramos na van, de volta ao muquifo.

Era o quarto dia de cativeiro. A viagem me deixou exausta, e, no sono, falei tão alto que acordei Daniel. Pela manhã, ele comentou comigo que teve vontade de me dar uma cotovelada, mas desceu da cama, com cuidado para não me incomodar e se enrolou no chão, para que “a princesa” pudesse descansar em paz.

Outro noticiário e nova discussão. Eu ouvia cada palavra, com nervos, fingindo atitude descompromissada. Vozes alteradas, rumos diferentes. De repente, Nivaldo deu-me uma olhada e passou o indicador pela própria garganta. Os dias de raiva e ansiedade explodiram, e os bandidos rolaram no chão. Nivaldo terminou em cima e deu uma série de golpes firmes no nariz e no maxilar de Daniel, um depois do outro. Satisfeito, a fúria passou. Ambos ofegavam. Meu coração se sentiu mais leve, amaciado? Não. Fiquei no escuro, em tormento, sem nenhuma possibilidade. Sozinha. Lembrei-me de coisas, todas passando atropeladamente pela cabeça. Imagens-relâmpago. Cada coisa somada distraía um pouco, mas no total era nada. Vazio.

Ninguém pegou arma nem me cortou a garganta. Simplesmente, amuaram em seus cantos. Foi mais uma noite de vigília na frustração que enchia o quarto. Em vão lágrimas tentavam escorrer. Eu podia apenas ficar lá. Não conversavam comigo. Abusariam de mim? Seria solta ou morta?  O silêncio pesado a doer. O mundo desorganizado, o medo crescido.

Perdia-me entre dúvidas… Uma suspeição no ar. As coisas amontoadas em mim, o que ajuntei e o que ajuntaram. Algumas foram tiradas, mesmo arrancadas com dor; outras foram se desprendendo devagarinho, de manso, foram ficando para trás. O único conforto era que não me tocaram.

 

Os noticiários não foram melhores no sétimo dia. A polícia divulgou fotos da van roubada. Isso deixou-os nervosos. Nivaldo saiu para escurecer vidros e trocar placas.

— Princesa, temos que ir! Agora! — Rápido, colocou-se na minha frente, impedindo-me de continuar. Vislumbrou uma oportunidade e a alcançou. — Não tenha medo; comigo não corre perigo!

 

—Faz tempo que você anda em círculos, Daniel. Parece não conseguir viver sem mentiras — temerosa falei muito de uma só vez e, olhava para o rapaz, mais para ver o que ele estava fazendo do que para atendê-lo.

Veremos! — pensei, com uma risadinha por dentro. Entendera o suficiente dos noticiários para montar o passado criminoso de Daniel. Ainda assim, outros elementos surgiam no retrato dele — um rapaz com defeitos, mas compassivo. Eu captara detalhes, mas não o quadro todo de uma vida conflituosa. Não percebera que a dependência crônica de drogas e aquilo que consideravam transtornos mentais, tinham-no empurrado para o crime — e ainda não sabia que era pai de uma menina.

 

Daniel confessou-me que não suportaria me ver assassinada por erros dele, que interferiu e convenceu Nivaldo de não me matar na praia. A briga violenta na noite anterior também tinha sido por minha causa.

— Você deveria se entregar — aconselhei, criando coragem.

 

— Não me force. Estou cansado. — o rapaz não rejeitava a sugestão — Acabo indo daqui para ali, sem opção. Tenho que olhar em frente….

— Sem pressão. Precisa mudar a cabeça — com o peso das coisa que lhe dizia, levava-o a enxergar outro caminho. Ele estava grato porque eu não o condenava. Não queria mais me chamar de “princesa”.  Fiquei comovida e entendi que poderia confiar nele.

 

— Meu nome é Cecília. Ceci. — aprendia a ter cautela, mas, quando olhei o homem ferido a meu lado, o rosto arroxeado pela briga, a psique cheia de cicatrizes, vi o bem que o resto do mundo não via. Animei.

 

— Fugas, sequestros acontecem e chegam ao fim. Não sou uma mercadoria. O inferno é cheio de corredores longos onde só restam crueldade e miséria — enquanto me ouvia, o rapaz foi se dirigindo para uma delegacia. A polícia foi avisada da van e Nivaldo acabou capturado. Desconheço detalhes.

 

E eu? Retornei à quitinete. Ninguém sequer notara que havia sumido. Não sei como, nem o Uber!

 

Procurei a filha de Daniel e dei-lhe apoio, não só material, mas, sobretudo, psicológico. Assim, mantive contato com Daniel no presídio.  Na última visita, choramos baixinho, gratos e surpresos com as possibilidades dessa amizade. Aonde quer que tenha achado que aquela viagem me levaria, não era ali.

 

Enquanto sorria por trás do vidro, percebi que Daniel salvara minha vida e até redimira minha alma. Enquanto ele estiver disposto, vou salvá-lo, como ele me salvou. Houve perdas, traumas, consequências, até ganhos ante as escolhas feitas.  Então, se houver uma orientação à conclusão do assunto, vale trabalhar de forma cautelosa e tranquila.

 

— Ah! — ainda falei com o amigo — uma novidade. Começo a trabalhar na minha área, na semana que vem. Uma multinacional! Deseje-me sorte!

 

20 comentários em “Resultado Difícil de Prever (Fheluany Nogueira)

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  1. A conhecida Síndrome de Estocolmo esmiuçada neste texto tenso e fluído que vc trouxe para nós. Poderia ser um roteiro de um ótimo filme de ação. Só não entendi porque não sequestraram alguém com posses. Parabéns pelo seu triller! Ficou bem legal, com linguagem direta o que deixou o texto bem fácil de ler. Personagens bem elaborados, situações críveis, momentos de suspense. Um conto e tanto e que foge bastante ao seu estilo de escrita. Parabéns, querida.

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    1. Olá, Iolanda! Pensei na Síndrome sim. E o sequestro não foi por dinheiro, os bandidos precisavam fazer algumas coisas e chamaram um Uber; depois apareceram na tevê e a motorista os reconheceu, então foram ficando com ela… Obrigada pela leitura e comentário gentil. Beijos

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  2. Aqui você me surpreendeu com um estilo de narrar em que não a reconheci. Lá pelo meio de texto, tive que voltar ao início, para a chamada, para me certificar que a autoria era sua e não de outra autora “Para inspirar”. A trama é bem envolvente. Sua narrativa torna o enredo pouco crível em algo verossímil graças, também, ao consistente desenvolvimento dos personagens. O desfecho otimista e edificante me surpreendeu positivamente, pela inversão da expectativa. A história tem jeitão de filme. Se eu a tivesse escrito, faria o exercício de transformá-la em roteiro. Parabéns! Gostei demais!

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  3. É um texto diferente dos que tenho lido escritos por você e foi uma grata surpresa. Ficou com ares de texto modernista, em especial senti familiaridade com o que li de Flannery O’Connor, conhece? Achei que a linguagem empregada não floreia, conta a história e dá a agilidade de que ela precisa. Isso também me lembra um pouco também a prosa de Luiz Alfredo Garcia-Roza, escritor policial. Acho super-válido o exercício de transformá-lo em roteiro. Um curta? E talvez o título, a impressão é a de que ele está deslocado. Talvez “Imprevistos”, não sei, fica a sugestão. Parabéns, Fhe! 😉

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  4. Olá, Fátima. Li no dia que postou e gostei, mas não reconheci o “estilo Fátima”, o que é ótimo, pois isso aó demonstra que tem capacidade de metamorfosear a sua escrita, algo que não é para todos. Se até ter um estilo próprio é difícil (e você tem), quanto mais mudá-lo completamente. Se fosse num desafio sob anonimato, nunca chutaria a autoria para si, mas sim para uma das excelentes contistas mais jovens que temos no grupo. Sim, porque está muito leve e jovem. Parabéns!

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    1. Olá, Ana! Você inflou meu ego. Ter estilo é tudo que uma amadora pode desejar. Que bom que tenha gostado desta história; estava escrita há bastante tempo e realmente eu era mais jovem. Somente dei umas aparadas e uma revisada. Obrigada pela atenção. Um grande abraço.

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  5. Uma narrativa com estilo juvenil, dessas histórias que poderiam passar na sessão da tarde. A trama prende a atenção, pois queremos saber o que vai acontecer com a motorista do Uber. Fiquei imaginando a moça de pijamas, pensando – no que foi que fui me meter?Realmente, ela não poderia ter previsto nada assim. O final com a amizade improvável ficou bem bacana. 🙂

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  6. Querida Fátima,

    Como todas já disseram, você nos apresentou um estilo diferente daquele a que estamos acostumadas neste belo conto. Um conto com ares de novela, com uma pegada ágil e diálogos bem trabalhados.

    Aqui está a prova de que podemos, sim, escrever em estilos diversos, e, caso você estivesse sob pseudônimo, muitas de nós seriam enganadas.

    Quanto à trama, também pensei na Síndrome de Estocolmo, pois a protagonista se afeiçoa
    grandemente a seu sequestrador. Porém ,acho que no final, a mensagem que acaba ficando clara é a de eu a vida sempre pode oferecer uma segunda chance. E é isso que a protagonista oferece ao agora amigo, o que, de certa forma, ele também ofereceu a ela, ao livrá-la de ser morta.

    Certa vez assistir a uma reportagem sobre um fotógrafo que, ao ser assaltado, ao invés de ficar com raiva do menor que o “atacou”, foi atrás de saber mais de sua vida e o ajudou, pois foi capaz de ver através de sua realidade. Isso exige muita coragem e amor.

    Parabéns pelo texto.

    Beijos
    Paula Giannini

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  7. Olá, Fátima! Reconheço aqui – O que quer que tivesse esperado viver naquela noite escura e fria em que saíra de casa de pijama, não era aquilo. – uma resposta a um dos exercícios da nossa oficina. Um início memorável e instigante, que incita à leitura do texto.

    Realmente o estilo inusitado me confundiu. Um conto de ação e de superação, de alguma forma. Uma amizade surge onde menos se espera e há a redenção ao final. A sequência de cenas, a linguagem acessível, a mensagem positiva ao final. Seria um belo roteiro, certamente. Muito bom!

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  8. Este conto me levou ao questionamento acerca do tão debatido tema que acontece nos dias atuais: o trabalho infantil. É certo que tem pessoas mais afoitas pelo perigo e malandras mesmo, mas será que as circunstâncias também não colaboram para a formação do caráter de alguém? Uma criança que precisa largar os estudos para trabalhar e ajudar a família, por exemplo. Queria ter a capacidade de acreditar em segundas chances, mas são tão raras…
    Bjs ❤

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  9. Segunda chance… Final feliz… O que mais se quer. Eu gosto de finais felizes e, esse, na medida do possível, foi um final feliz. Eu diria, acertado, pelo tipo de pessoa que a protagonista é. Não imaginaria outra ação da parte dela. Pode parecer utópico, coisa de sonho, e pode nos remeter à Síndrome de Estocolmo, mas não creio que coubesse outro final, a menos que fosse um bem trágico.
    Parabéns pelo texto.
    Beijos e abraços carinhosos.

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