…a tempo – Fheluany Nogueira

Estou só, só, só, só, só.

Só.

Estou só. Nem um bicho para me acompanhar. Desejo que apareça uma daquelas aranhas que quase sempre aparecem por aqui. A gente vê de repente, leva susto, mas tem uma companhia. Fico adiando a morte dela só para ter uma presença. E mato, mesmo porque não tenho outro jeito, pode vir passear pela cama… Matando o bicho, divirto-me um pouco. É bom ter uma companhia, ainda que se lute contra ela.

Nem a aranha. nem uma aranha. Os tico-ticos chegam pertinho da janela, mas é de dia. De dia tem sol, o sol é uma companhia. E de dia tem vozes e passos. Mas de noite!… Fico arrancando defuntos dos livros, das revistas, não perco nenhuma linha. Torço até para que apareçam fantasmas. Ou será que sou um?

O quarto é desigual. Não tenho geometria suficiente para explicá-lo, embora seja simples.

Simples, porém, muito desigual. Termina em ponta para o lado da rua onde está a janela. De paisagem circunscrita, mas que me permite divagações e a sensação de vulnerabilidade e desequilíbrio. Faz-me ficar exposta aos tetos multiplicados, às últimas ramificações das árvores e a um possível contato visual.

O piso tem oito peças, ou sete, se não contar a última que se apresenta visível apenas pela metade. Talvez fosse melhor dizer seis, porque a primeira também está semiescondida: acho que o melhor mesmo é restringir-me a uma margem de segurança, de oito a seis peças. O forro? Não seria fácil a tarefa de contar as peças do forro. A vista se embaralharia, a preocupação de acertar levaria a erro ou pelo menos a grande insegurança. Ainda bem que o forro é liso…

Depois o quarto fica sempre numa obscuridade que favorece um medo antigo: a vida. É um medo que me acompanha para qualquer lugar a que vou: escondido nos livros, enfiado na bolsa, debaixo dos lençóis. Encontro as marcas dele sob a cadeira, sobre a cama, no banheiro. Mas, no espelho, só vejo meu rosto vincado na superfície fria; só o susto dos olhos; só o ar de criança envelhecida… 

A esperança, discreta, foge da luz… Qualquer coisa no sossego da sombra me faz bem. É no escuro que me sinto em casa.

Voltas e voltas e mais voltas na cama. Baba e raiva e gemidos. Mudanças de posições, cansaço. A bexiga ardendo. 

É uma noite que pouco promete.

São quatro horas ou menos.

Tomei o comprimido para dormir. Não vale nada. Planejo a morte… Porque agora já chega!

Quando nos separamos, era março. (Foram dias de tempo seco. No fim de semana, sentimos a entrada do ar frio. A temperatura caiu em todas as regiões, mas na Grande São Paulo, o excesso de nebulosidade e o vento frio ajudaram a manter a temperatura amena o dia todo.

Outros tempos. Nenhuma criança, com ou sem babá, fazia algazarra pelo parque. Nem velhos curtiam a tarde, jogando baralho, bebericando, ou, sentados nos bancos, contemplando a vida.)

A gente sente falta de coisas estranhas quando perde alguém. Coisas pequenas. Da risada. Da maneira que ele se vira enquanto dorme. De preparar-lhe uma salada.

Eu calada mexendo na aliança ainda no dedo. Como se procurasse alguma outra coisa para fazer.  Lembrando, sim, que fui bastante feliz, e que alguns anos depois era apenas a rotina.

Varei um outono que pouco prometeu.

Veio o inverno. Eram quatro horas ou menos da tarde. Sexta-feira. Estava com um pigarro incomodando na garganta e cuspi na pia do banheiro — coisa vulgar. Deu vermelho.

Parei, olhei, conferi: vermelho mesmo, de sangue…

(Acabava de perder meu serviço. Sim, fui demitida!Depois de mais de vinte anos de carreira sólida em uma empresa de turismo da América Latina.

“A pandemia” — desculparam-se…

Entraram no meu escritório numa segunda-feira e disseram que não fizeram aquilo na sexta para “não estragar o fim de semana”. “Vai poder ficar mais sossegada agora”. O que sabem sobre acordar de repente numa terça e não ter mais nenhuma função?

Todos vulneráveis, ainda que bem preparados. Tinha que desacelerar, repensar despesas e passar pela tristeza. Era importante permitir-me chorar, sentir medo e contar com Maurício. Ele, que também já me demitira.)

Lidando com tantas perdas, estava eu ali, diante de um indisfarçável escarro de sangue.

Não um choque. Houve apenas uma sacudida, uma espécie de tremor de terra, tremor de carne, diante do fato de que eu teria de entregar os meus dias a essas muros, a essa paisagem, a essa gente que me circundava com olhos de curiosidade mais que tudo, com olhos de compaixão e consolo: “também você, eh!

Não pensava de habituar-me tão facilmente a essa vida. Primeiras impressões (em casa): encontrei uma teia de aranha, o que me deixou irritada; a comida péssima, sem paladar. O tratamento poderia ser diferente; a sopa, o bife, a salada poderiam ser melhores. O café não poderia ser pior. Sem olfato. Indiscutivelmente, sem forçar a memória: o pior café que já entrou pela minha garganta maltratada.

O sentimento, (no hospital), era de viver numa nave antiga, com alguns astronautas. Andavam me rondando, planando sobre minha cabeça. Rodaram, rondaram e se foram, pontos brilhantes ao longe se perdendo… Esse pensamento me veio, quando descobrindo o ambiente dei com os monitores nas paredes da clínica, adoçando, luminosos, a implacabilidade do crepúsculo. Tornei-me amiga, sem dúvida, do enfermeiro desse período. Ainda não sei o nome dele. Amanhã devo me informar.

Os outros doentes no hospital — fora as Irmãs, que tinham um regime espartano — ou estavam sempre dormindo, ou sei lá.

Tive ainda tempo de ouvir o Papa na televisão. Comovi-me, mas pouco, com as notícias pungidas, lentas e solenes com que anunciam os números no boletim. Não sei se me entristecia com as mortes ou se as via como um descanso… Meu interesse sem dúvida era mais jornalístico do que outro. Aliás, essa era das grandes ocasiões para a imprensa.

Três semanas depois, praticamente me amanheci no meu apartamento, já habituada aos ares, aos horários, à rotina dos comprimidos por dia que mais pareciam cobras a me picar.

Não tinha café e estava cá, sozinha, respirando o oxigênio molhado que vinha das plantas banhadas de orvalho e da garoa que caíra na noite.

Sentia-me leve — isto é no sentido de quem não carrega mais uma outra pessoa. Tinha tanta coisa para pensar, imersa naquela solidão, que não dava para pensar em nada. As coisas que me esperavam lá fora, um mal-estar me roendo por dentro (o qual eu tentava desconhecer).

Lágrimas de escárnio, escondidas no quarto, deixaram-me sobressaltada e não pude dormir. De novo. O que me fez pescar a noite inteira em poços escuros, arrancando do fundo das águas estranhos sonhos, prontos a assombrar o meu (a)gosto.

Estava só, só, só, só, só.

Só.

É setembro, — talvez seja domingo — que teima em brincar comigo. Topo.

(Ding! Dong! Ding! Dong!)

São quatro horas ou menos…

Abro meu coração, minhas narinas, meus olhos e ouvidos ao redor, e vou descobrir as flores à porta:

— Olhe, trouxe isso para você! Prometi. Andei trabalhando como um louco, por isso demorei a vir. (Esqueci de contar que me informei do nome do enfermeiro da tarde: Luís Alcindo. A risada dele me pegou de surpresa. Como um refrigerante, que despejado rápido demais, transborda. Um riso que não estava de acordo com as regras e normas… A cena não combinou nem um pouco com todo aquele cinza do hospital.)

E algo brilha em seus olhos. Algo que reconheço. Fecho-abro os meus, vejo tudo de beleza. Vou ficando lúcida e segura.

Assim: um gesto, duas mãos convergindo. Apaga-se o inconsolo. E meu plano desorganizado: havia contratado a agência funerária e comprado um lugar no cemitério. Pagara todas as contas. Não havia nenhum empréstimo. Nenhuma dívida. Ninguém precisaria arrumar nada depois que me fosse.

O tempo é algo notável. Vivemos só para o que está diante de nós. Alguns dias, algumas semanas, alguns anos. E, quando o tempo não está diante da gente, é preciso encontrar outras coisas pelas quais se possa viver.

As memórias, talvez. As tardes ao sol com a mão de alguém apertada contra a sua. O perfume de canteiros recém-floridos. Domingos num café. Encontra-se um jeito de viver para o futuro de outra pessoa.

Luís me abraça forte. Está aqui e isto é bom. Mais nada.

24 comentários em “…a tempo – Fheluany Nogueira

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  1. Olá, Fheluany.

    Um fluxo de pensamentos, lembranças e emoções em época de pandemia.

    Ela se divorcia, perde o emprego, adoece e volta para casa. Vai contando suas impressões sobre estes fatos, relatando o tédio, a doença, a solidão, e a vulnerabilidade.

    Nada mais parece prendê-la, e faz planos para a própria morte, assegurando não ter mais nenhuma pendência a resolver na vida.

    No fim, uma imprevisibilidade positiva desfaz os seus planos.

    O texto é bem escrito e intimista, na parte de ter o quarto tão próximo ao mundo exterior, rolou uma identificação, porque o meu quarto do apartamento também é assim. do meu banheiro para o mundo há apenas uma parede e a varanda. Um nada que me impeça de estar a vista de todos. A janela fica ao lado da cama, tudo muito exposto.

    Sua personagem nos convida a sentir com ela suas fragilidades e essa é a tônica do conto, um desnudar-se, um mergulho em sua consciência.

    Parabéns pelo texto. Aguardando os demais que virão.

    Beijos e muito bom domingo.

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    1. Querida Iolandinha,

      Você sempre me estimulando… A primeira a ler meus textinhos e comentá-los. Pensei em amarrar pandemia e setembro amarelo, porque, na realidade tem muita gente deprimida com o isolamento social e pensando na morte.

      Obrigada pela sua amizade. Beijos

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      1. Ainda bem que desistiu do desfecho mais dramático. Ia ficar com pena. Sempre torço por finais felizes.

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    2. Texto forte, muito, muito bonito. Nossa fragilidade diante da vida e da morte. Solidão é a nossa condição, desde q se nasce né? Mas só em alguns momentos somos desafiados a encara-la de frente. Gostei muito, Fátima!

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      1. Obrigada pela leitura e comentário tão simpático. “Quem encontra prazer na solidão, ou é fera selvagem ou é Deus”, segundo Aristóteles. Acho que sou fera selvagem, pois vivo valorizando a solidão, mas tenho um bom marido, há cinquenta e um anos, filhos e netos, além de muitos amigos. Vai explicar… Beijos! Grata pelo carinho.

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  2. Fátima, eu amei seu texto. Que escrita gostosa, envolvente… O texto começa meio Clarice Lispector, macio, instigante. Depois nos traz a realidade que enfrentamos, a solidão, a tristeza, a doença, o abandono. E, que maravilha, o desfecho com uma mensagem de amor, de esperança. Muito bom mesmo. Parabéns.

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  3. Que bom que você gostou, Fernanda. Sua opinião é importante para mim. Se consegui passar para o leitor a profusão de sentimentos em que estamos envolvidos neste agora, sinto- me satisfeita. Obrigada. BEIJOS.

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  4. “Encontra-se um jeito de viver para o futuro de outra pessoa.” Que fecho maravilhoso você deu ao seu conto. Poético, humano, sensível, profundo. Me derreteu. Adorei seu conto. Ele tem momentos incríveis, de muito sensibilidade. Gosto quando a narradora, toda tédio, descreve o ambiente do quarto. E da forma seca e enxuta como descreve o casamento desfeito. Em geral gosto muito de sua escrita, Fátima, da forma de narrar e da linguagem, para mim é uma escrita de muita personalidade. Obrigada por mais esse texto. Beijo

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  5. Querida Fátima, gostei muito do que li aqui, realmente o final com esta frase sobre o futuro ficou linda!
    Fui me deliciando com cada descoberta q o texto ia revelando depois daquele começo tao introspectivo, tão só.. É uma leitura que certamente injeta esperança e eu adoro isto! 🙂
    Obrigada por ela.
    Bjs

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  6. Querida Fátima,

    Seu texto, como sempre, me ganhou…

    A voz narrativa é perfeita. Entediada quando deve ser, seca, no momento correto para a coisa. O modo de escrita vai além das palavras e encontra na forma um meio de comunicar para as emoções vividas (certeiras) por esta personagem tão humana e que tem muito de todas nós, mulheres contemporâneas.

    Como as outras, amei o belíssimo final.

    Obrigada por nos presentear com este conto.

    Beijos
    Paula Giannini

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    1. Paula, está lembrada de que lhe falei que tinha um texto pronto, mas precisava mudar o final para mais otimista? Pois é… aí está.

      Obrigada pela leitura e comentário tão amável. Beijos.

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  7. As vezes acho que sou um ET, vejo todo mundo reclamando da quarentena e da solidão, e eu amando a minha solidão, o meu silêncio. Mas sei da grande parte das pessoas que se sentem péssimas com essa etapa de nossos dias e que bom que a protagonista de seu texto encontrou algo que trouxe de volta seu significado de vida. Bjs ❤

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    1. Obrigada, Vanessa! Para mim, é significativo o retorno e somos companheiras há bastante tempo. Eu também amo a solidão, somente essa personagem é que foi reclamona…(rsrsrsrs) Beijos carinhosos.

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  8. Olá, Fátima! Como é bom voltar a ler seus textos. Esse tem um toque intimista à la Clarice Lispector, que com maestria vai deixando o leitor mergulhar na sua vida sofrida. A solidão, a falta de um norte quando perde o marido, depois o emprego e a doença, até o final depressivo, então a esperança. A personagem convida o leitor para o seu íntimo, depois dança com o ele, revira-lhe com seus rodopios, apresentando as reviravoltas em sua vida desencantada, depois , ao final, faz-lhe uma cortesia e beija-lhe a mão, com uma acenada esperança. Sua capacidade de sedução é imensa e o texto é outro bom conto de sua lavra. Muito bom.

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  9. Oi, Fatima!
    Seu conto é extremamente sensível, poético mesmo, poderia dizer.
    Personagem reflete sobre a vida, sobretudo a partir de março, a ausência de crianças e velhos nas praças, numa alusão ao coronavírus, ao mesmo tempo em que vive drama pessoal – separação, ela mesma contraindo o vírus, a recuperação solitária, a demissão….
    Maravilhosas e profundas reflexões sobre a vida, eu li muitas vezes o final, que pelo que li nos comentários, foi reescrito (muito bem, como sempre):

    “O tempo é algo notável. Vivemos só para o que está diante de nós. Alguns dias, algumas semanas, alguns anos. E, quando o tempo não está diante da gente, é preciso encontrar outras coisas pelas quais se possa viver.

    As memórias, talvez. As tardes ao sol com a mão de alguém apertada contra a sua. O perfume de canteiros recém-floridos. Domingos num café. Encontra-se um jeito de viver para o futuro de outra pessoa.”
    Que lindo, que beleza, Fatima. Parabéns!

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  10. Obrigada pela leitura e pelo amor de sempre. Que comentário mais estimulante!

    Reescrevi sim. De início, a protagonista se matava; não podia deixar assim para o texto se encaixar no espírito de setembro-amarelo.

    Beijos. 🌹🌹

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  11. Amei o conto, Fatima. É possível classificar como prosa poética? Não sei, só sei que me tocou, fiquei imaginando o ambiente conforme descrito e parecia que eu estava lá. Esse texto, pra mim, daria um belíssimo curta… O final é lindo, me emocionou bastante!

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  12. Um conto bastante sensível, cuja personagem vai se emendando em idas e vindas, moldando-se ao tempo. Acho que é assim, ou quase isso que acontece conosco. Vamos vivendo nossas singularidades e nos apoiando no que temos de melhor.
    Parabéns pelo texto.
    Beijos e abraços carinhosos.

    Curtido por 1 pessoa

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