O lixão do abutre. O lixão da Rute. (Sabrina Dalbelo)

Na terra acinzentada onde o abutre se alimenta e depois defeca, onde o resto é despejado, a menina Rute brinca, corre pra todo lado. Lá, para onde algo que alguém não quis mais é transportado. Lá, no fedor, na lama, no chorume, onde adubo é revirado, onde o homem pisa, cata e vende até o que abutre não come.

Sabe o lixão, aquela reunião de lixo e de pessoa com fome?

Na pandemia não fecharam o lixão, porque gente, qualquer gente, pobre ou rica, sadia ou doente, faz lixo todo dia. Não importa se é idoso, grupo de risco, criança, seu filho ou minha tia. Todo mundo faz lixo de papel higiênico todo dia.

“Cata, cata, cata. Cata lixo no lixão.”

Não, não fecharam o lixão na pandemia.

Não tem máscara que esconda o vírus no lixão. Não tem máscara que esconda a gente do lixão.

Na terra acinzentada de onde os catadores tiram o sustento, todo dia chega lixo e todo dia sai lamento. No lixo, até o lixo é alimento.

Tem vírus de todo tipo no lixão, tem todo dia.

No lixão come abutre. No lixão corre e brinca a Rute.

15 comentários em “O lixão do abutre. O lixão da Rute. (Sabrina Dalbelo)

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  1. Dura realidade da vida dura. Hoje li um frase que traduz mais ou menos isso. É também de um poema, de Micheliny Verunschk: “eu sei que o anjo da morte inventou essa tristeza de ser gente
    e de saber da porcelana de todas as coisas.”
    Sabe quando tem dias que a poesia não consegue aliviar o peso e a fragilidade das coisas? Então… Hoje é um desses dias e, assim como o poema, seu texto trouxe à tona essa miséria cotidiana e nossa insistência em lutar contra, em desfazer os nós em nós.
    Parabéns pelo texto.
    Beijos e abraços carinhosos.

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  2. Oi, Sabrina!
    Triste, verdadeiro, sempre pairando na realidade de quem não consegue, ou não pode viver na bolha, sua prosa poética encheu meus olhos de lágrimas. Rute brinca, talvez com fome, a mesma dos abutres – penso na metáfora para abutres…Rute brinca, para quê, e até quando?
    Amo essa sensibilidade,
    Beijos

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  3. Muito triste, mas muito real. Gosto de textos assim, nos faz pensar, refletir, e se indignar com a realidade humana. Enquanto muitos vivem com paranoia de vírus, outros nem se dão conta do que deveriam fazer, afinal, não têm escolhas. Bjs ❤

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    1. Exatamente, Vanessa. O vírus é apenas um mal ingerenciável.
      Será que existe necessidade de usar máscaras na boca e nariz ou é melhor usar nos olhos? Obrigada

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  4. Vixe! Amei! Micro forte, carregado de sarcasmo, de crítica social, calcado no susto flamejante das relações minúsculas, que flagra na sociedade os equívocos do sistema e as manobras (in)conscientes que perpetuam esses mesmos equívocos e esse sistema. Linguagem poética, mas crua. Sensibilidade triste, mas deslumbrante.

    Parabéns peo texto que entra na quietude, agita qualquer coisa sonora que há lá no fundo e faz o silêncio falar. Um forte abraço.

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    1. Fátima, já te disse que vou te contratar como comentarista master? hahaha
      Teus apontamento são sempre incríveis.
      Muito obrigada!
      E essa sou eu: “Linguagem poética, mas crua”.
      Beijos

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  5. Olá, Sabrina!

    O que dizer desse trecho: “onde o homem pisa, cata e vende até o que abutre não come”?
    Que tipo de sociedade é a que se lamenta a produção do lixão para que os que nada tem ainda possam escarafunchar os resto de um resto que ninguém mais quer? Miniconto contundente e certeiro, um soco no queixo das nossas certezas e comodidades. bravo!

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    1. Obrigada Sandra!
      E é a isso que faço coro: “que mundo é esse?”.
      Um grande beijo. Adorei teu comentário.

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  6. Querida Renata,

    Tudo bem?

    Demorei, mas, cá estou. Você sabe que o tema me atrai muito, é uma denúncia. Algo necessário demais em nossas sociedade. Essa sua pegada social, a cada dia melhor, é sua marca como autora. Uma marca forte e, como já disse, necessária. Histórias em lixão, sempre me remetem ao filme Estamira… Como pode uma realidade assim existir fora da ficção, não é?

    Feliz Ano Novo, amiga querida.

    Beijos
    Paula Giannini

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