Uma Noite Qualquer – Claudia Roberta Angst

Quase hipnotizada, Marina encostou o nariz na janela. O contato frio despertou-lhe os sentidos já entorpecidos. O ar expelido pela respiração entrecortada embaçou a visão que antes transparecia. Afastou o rosto e tocou o vidro com as pontas dos dedos. Ouviu um sino distante e observou o craquelar do cristal. Vidro transformado em flocos macios, esvoaçantes, valsando sob um céu azul profundo.

Se Marina soubesse que a liberdade exigiria tão pouco esforço, teria se apressado no desfazer do destino. Livre, respirava o mundo que, um dia, também a fizera feliz. Lembranças, doces lembranças que faziam seu estômago doer. Ou seria apenas fome?

Era tudo o que lhe restava: a liberdade em uma noite qualquer sem luar. Ser livre para recordar um passado tão breve e divagar sobre um futuro que lhe parecia por demais distante.  Marina sacudiu a cabeça para dissipar a tontura que insistia em chegar. O balanço fez com que os negros cabelos cobrissem suas costas como um xale de espessa lã. Seus olhos adoçados em tons de mel ainda guardavam a essência de uma infância perdida.

Sacudido por uma súbita onda de tremor, o corpo diminuto encolheu-se, agarrado àquele nada que invadia a gélida madrugada. Marina esticou os braços para provocar algum movimento no ar como um maestro a reger intenções.

Por alguns segundos preciosos e fugazes, sentiu-se planar em solitário voo, ainda que desprovida de asas. Assim como em um delírio, parecia ter olhos de águia, ou talvez, a sabedoria de uma coruja. Mau agouro. Era tarde, muito tarde, ela repetiu para si mesma mais de uma vez.

– Não vamos falar disso agora.

Ela virou-se, espantada com a voz que não se apresentava como real. Os flocos de neve ainda caíam formando um manto aveludado. De repente, surgiram dorso, patas e uma bela cabeça ornada por um único chifre. Extremidade revelada como uma adaga sagrada dos muitos sonhos que Marina atrevia-se a guardar. Era dela, o unicórnio de maravilhosa crina, balançando com o vento gelado em noturna vigília.

– Ainda não vamos falar disso, menina.

Marina, seguindo impreciso instinto, fez-se amazona e no seu unicórnio encantado montou. O pouco peso não abalou nem crina, nem sina. Ela seguiu feliz, segurando-se nos pelos que lhe pareciam feitos de seda.

Depois de alguns minutos de êxtase, a música começou, invadindo a noite com o seu carrossel de compassos. Girando, girando, sem pausas, as notas subiam e desciam, acompanhando a risada infantil. Era ela, Marina, menina, que ali confundia o tempo com sorrisos.

– Não falemos mais disso, não mais.

Marina sorriu, concordando com o companheiro de viagem. Não ousou contestar aquela imagem que a distanciava cada vez mais da razão. Preferiu despir-se de qualquer desconfiança, embriagando-se da nova realidade com voracidade.

Com delicadeza, Marina controlava o ritmo do unicórnio. Parecia que qualquer movimento mais brusco faria aquele ser mágico sumir. Fechou os olhos e sentiu a neve cair sobre seu rosto, misturando-se às lágrimas.

Cansada, a menina permitiu-se viver aquela estranha passagem, dando as costas a qualquer receio. Viu-se coroada por um halo de delicadas flores entrelaçadas. Vestes muito alvas tocavam-lhe a pele, cobrindo seus últimos temores. Cristais pendiam de suas orelhas e pescoço como frias constelações brilhantes. Nunca havia sido tão rica, princesa munida de forças estelares.

Admirada com a beleza do momento e das sensações calmantes que lhe vinham, a garota pensou em despertar do transe. Estremeceu, abrindo os olhos com muita dificuldade. As pálpebras pesavam convidando ao adormecer. Talvez fosse o frio, a cauda do sono a lhe açoitar os pensamentos.

– Não precisamos falar sobre nada disso. Confie, apenas confie.

Os olhos de Marina vidraram, pontilhando uma mira que nunca existira. A flecha aguda da dor perfurou a pouca consciência, desfazendo-se em uma nuvem de torpor.

O unicórnio já amuado não mais falou. Silenciou a magia em galope solene. Marina, pequena, magra assombração do que pretendera ser, inclinou-se, abraçando o dorso do mágico animal. Não sentia mais frio. O contato macio do pelo em seda trançado serviu-lhe, enfim, de acalento. A coroa de flores caiu, deslizando pelos cabelos e na neve afundou. As pétalas espalhadas transformaram-se em pontos de luz. Talvez velas, chamas impossíveis no frio cortante da noite.

Diminuindo aos poucos o ritmo do seu trotar, o unicórnio concordou com o destino. Estancou, relinchando em descompasso fúnebre. O corpo da jovem tombou em lenta procissão sem anjos.

Na estática cena, a menina embriagava o solo com seu último desejo. Ainda que fosse aquela a única vez, Marina teve sua prece atendida. Encantada seria, na mais fantástica fantasia, para toda a eternidade jamais esquecida.

O unicórnio curvou-se em reverência à escolhida da noite. Não era mais uma invenção desenhada em sonhos. Já não precisava existir para aqueles olhos febris. Sua reluzente figura seguiu viagem, cobrindo de estrelas o caminho sem volta.

A menina dormia no seu sono de mentira.

17 comentários em “Uma Noite Qualquer – Claudia Roberta Angst

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  1. Não leia este comentário ele pode conter SPOILERS….Não sei se entendi, mas na minha interpretação a menina se suicidou. A neve era o vidro da janela, o voo era a queda e o unicórnio era uma fantasia, algo que a fizesse esquecer as lembranças sofridas enquanto caía. Um texto com metáforas e muita beleza. Uma maneira de amenizar algo tão terrível e inevitável como a morte, ainda que seja desejada. Belo texto, moça linda. Beijos.

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    1. Obrigada pelo seu comentário, Boca Vermelha linda. Para esse conto, há muitas interpretações. Pode ser apenas um sonho, ou um acidente de carro, ou um suicídio, ou ainda a passagem da meninice para a vida adulta. Depende de quem lê, depende do que o leitor quer ler. ❤

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      1. Lendo a sua resposta eu gostei mais ainda do texto. É que sou uma pessoa dramática e sempre escolho as alternativas mais drásticas, rs. Beijos, sua flor.

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  2. Oi, Claudia, viajei aqui nesse seu texto tão cheio de metáforas e fantasia. Entrei na história e fui visualizando cada cena. Muito bom. Entendi que vc descreveu a passagem dela para a morte, momento em que as imagens do passado se confundem com o real e o imaginário. Adorei a ideia do unicórnio. Parabéns. Bjs

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    1. Que bom que pude te proporcionar uma viagem nestes tempos sem novas paisagens. A sua interpretação é uma das possíveis para a trajetória de Marina. Mas o que é a morte, afinal? Agradeço pelo gentil comentário. Beijos.

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  3. Um rito de passagem? Daqueles que marcam momentos importantes na vida, estruturam e organizam as posições, os valores morais e as visões de mundo: uma travessia (infância/juventude ou mesmo vida/morte).

    Os rituais também são capazes de aliviar a dor, reduzir a ansiedade e aumentar a autoconfiança. E mais: como são uma espécie de protocolo de comportamento que exige autodisciplina, mas ajuda no autocontrole: a buzina (o alerta), o vidro quebrado (o passado), o voo (a nova etapa, o desconhecido). A menina crescida já não estará mais com seu unicórnio.

    A tessitura é perfeita: imagens sensíveis, conotações criativas, o universo do fantástico. É quase como ler uma poesia. Lacunas e dicas deixadas no momento certo, ritmo bem cadenciado. A proposta, pareceu-me, não é muito narrar uma história, mas os sentimentos.

    Parabéns, Cláudia, pelas construções frasais belas, fecundas, enigmáticas. Amei cada cena, situações tão simbólicas. Beijos desta fã.

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    1. Agradeço pela sua leitura sempre atenta e generosa, assim como pelo comentário abrangente e sensível. Sim, não há mesmo uma história, mas o tear de uma trama dos sentimentos de Marina. Dá até vontade de imprimir e enquadrar a sua análise. Beijos.

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  4. Claudia e sua já característica prosa belíssima, quase um poema! Senti uma transição em andamento na vida da personagem, e não acho que preciso ter certeza de qual é. Há coisas que prescindem de explicações.
    Parabéns pelo texto tão imagético e lindo! Beijo!

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    1. Gisele e a sua já conhecida generosidade na leitura dos meus textos. Admirável o seu acolhimento de incertezas com tanta naturalidade. Concordo com você, há coisas que não precisam de maiores explicações, elas apenas são o que o olhar do leitor decidir.
      Obrigada pela leitura e gentil comentário. Beijos.

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  5. Que lindo isso! Lindo e triste. Como um poema, melancólico e derradeiro. A vida perde o sentido sem o que nos alenta nossa alma fantasiosa. Talvez a noite, o frio, o pontilhado de estrelas possam fazer justiça ao arco-íris de nossas ilusões. Talvez o sono profundo possa abrandar o desejo da plenitude. Penso que muitas almas não cabem em seus corpos, porque o contrapeso, a vida, é por demais insuportável. Não há caminho sem volta, porque tudo é cíclico, mas há trilhas silenciosas em nós que estancam em encruzilhadas e de lá não há retorno.
    Parabéns pelo texto belíssimo!
    Abraços carinhosos.

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    1. Que bonita e poética a sua interpretação. Você tem razão: há caminhos sem volta, pois é preciso que se complete o ciclo da vida …e nesta jornada nos deparamos com muitas encruzilhadas/decisões que definirão nossos passos.
      Obrigada pela leitura e pelo carinho.

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  6. Que lindo, Claudia. Que fecho mais maravilhoso você deu ao conto. Vista de cá do lado da vida, a morte me parece grosseira, brutal e nada elegante, mas eu gosto de imaginar que do ponto de vista de quem vivencia a transição ela pode ser suave tal como um voo nas asas de um Unicórnio. Seu conto me comoveu Gostei demais das imagens. Um lindo poema em prosa como só você sabe fazer. Um beijo.

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    1. E o que seria a morte além de uma transição de um estado para outro? A fantasia, o planar nas asas de um unicórnio, deve facilitar a trajetória. Se é que Marina morreu… ou só parte dela se foi?
      Muito obrigada pela leitura e o generoso comentário. Beijos.

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  7. Olá, Cláudia!
    Acho que a Fátima fez um comentário muito preciso do seu texto. É admirável a sua maestria em fazer uma prosa poética soberbamente, aqui no conto, retratando os sentimentos de uma menina que teve uma infância “perdida” e “tão breve”, sofrendo de frio e fome? De todo modo, essa passagem de morte-vida é acompanhada por belos elementos como o unicórnio, os flocos de neve e uma coroa de flores que amenizam o ritual da passagem. O final em aberto é um ‘plus’ que nesse conto funciona muito bem! Parabéns!

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    1. Quis deixar esse final em aberto justamente para que o leitor pudesse interpretar a transição de Marina como desejasse. Morte? Ritual de passagem? Crescimento? Esquecimento? Um pouco de tudo?
      Agradeço pelo gentil comentário que sempre me incentiva a continuar. Beijos.

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  8. Querida Cláudia,

    Que conto bom, querida. Instigante! Minha interpretação é um pouco dissonante das demais, mas, vou contar à autora, para ela ver o que causa em seu leitor.

    Para mim, o ponto de vista, na guinada final, é do desenho, do unicórnio. Obra de arte e brinquedo nas mãos de uma menina, talvez até doente, mas, que logo o descarta. Amanhã brincará com outro. A curta vida de uma criação, ou, do ato de criação de uma obra de arte. ahahaha

    Beijos e parabéns!!! Um de seus melhores.

    Paula Giannini

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    1. Adorei sua interpretação. Pode ser isso mesmo, o tempo fugaz da criação de um brinquedo, de uma fantasia. O que desperta interesse hoje pode ser descartado amanhã. Tudo é transitório, tudo é apagável como as linhas do desenho de um unicórnio. Muito obrigada pela leitura e pelo comentário tão interessante. Beijos.

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