O Lugar Certo (Fheluany Nogueira)

O Lugar Certo

 

 

                       — Não vou! — parei na porta, disse com um pouco de calma e muita psicologia. Dei alguns passos para frente, estaquei e repeti:

                       — Não vou! —fiquei nesse vou e não vou, reprisando a lastimável cena algumas vezes. Notei que em minha volta perdiam a paciência e senti-me empurrada para dentro do avião, um tubo de metal totalmente à mercê de dois homens, encerrados dentro de uma cabine minúscula, repleta de equipamentos estranhos e complicados.

                       Não tinha como desistir já estava dentro do avião tentando me acalmar, parar meu medo. Fiquei quietinha por uns momentos.

                       Sentia a vibração do piso acarpetado e do abismo que logo haveria entre os meus pés e o verdadeiro solo. Fui me ajeitando no assento, lugarzinho apertado dos infernos…

                       Dei uma espiada à minha volta. Todos ali, (era o que me vinha à cabeça), serão meus companheiros na lista dos desaparecidos ou mortos. A aeromoça teve uma dificuldade danada para baixar aquela porta gigantesca, e eu tinha a impressão de que ela não sabia o que estava fazendo. Já viu um daqueles filmes em que a porta se desprende em pleno voo e a despressurização joga todos para fora? Pois é, não estou preparado para isso agora. O zumbido nos ouvidos, a cara dos comissários sempre sorrindo…

                       Quando o avião começou a taxiar na pista (aquele friozinho na barriga era o instintivo de estar fazendo algo antinatural), cintos de segurança me afivelaram. A poltrona tornou-se o meu lugar. Agarrei-me a ela e comecei, estática, a rezar em voz baixa.  Quando levantou o voo, a Ave Maria passou para voz alta competindo com o som reconfortante do fone, um “jazz”, que vinha direto da cabine para nossos ouvidos. E, ainda com o ruído das turbinas, alto como o da música.

                       Confortava-me pensar que meus sentimentos eram razoáveis para quem, apesar de acreditar nas conquistas tecnológicas da humanidade, ainda se deixa dominar por instintos perfeitamente naturais.

                       O aviso de “no smoking” me hipnotizava piscando à frente dos meus olhos. Mesmo assim, e para ver se conseguia espantar o medo, fiquei, de novo, observando os passageiros, agora com maior atenção —   alguns conversavam e outros liam seus livros e revistas ou ligavam seus eletrônicos, como se nada de anormal estivesse ocorrendo. Senti inveja da calma e tranquilidade mantida por aqueles que, pelo menos aparentemente, não se deixavam abalar durante a, mesmo esperada, arremetida. Um documentário sobre casas de férias passava nas pequenas televisões acima de nossas cabeças. O ar condicionado estava bom, bem frio… assim podia pensar que tremia por causa deles. A senhora, na terceira poltrona atrás da minha, roncava. A comissária de bordo trouxe café, misto-quente e coca-cola.

                  Daí por diante o que se seguiu foram análises baseadas em meus estudos básicos de engenharia e aviação civil, no Google (é lógico), que faziam com que eu identificasse qualquer tipo de barulho como uma potencial tragédia. Cada fechamento de gaveta das aeromoças me trazia um frio na espinha. Eram os sons da morte anunciada. (Tudo o que acontecia na cabeça de uma marmota como eu tem um significado e forma as minúcias da calamidade que, ao meu ver, estava por acontecer.)

                    Eu… Não falei, não comi, não fui ao banheiro, não abri os olhos… simplesmente rezava. Quando alguém tentava falar comigo, respondia rapidamente:

                       — Não posso falar, estou rezando!

                       Minhas mãos já não estavam suadas. Suados estavam os braços da poltrona e o lenço de papel que teimava em macetar. Minhas mãos estavam encharcadas. E nunca chegava aquela sensação de “tudo está sob controle”.

                       Contudo, meu azar estava por vir: o tempo começou a virar e a minha primeira viagem teria um temporal, com trovoada e relâmpagos. O céu cinza escuro e eu…O medo fermentando…

    Quase fim da viagem, o comandante anuncia:

                       — Senhores passageiros, vamos passar por uma leve turbulência.

                       — Que é isso? — interrompi as orações.

                       — É quando o avião sacoleja um pouco — explicou-me o passageiro do lado.

                       — Ai! Meu Deus! Jesus perdoe os meus pecados! Vou morrer sem ter filhos ou marido! — completamente em estado de choque.

                       O som da turbina não mudou de ritmo, porém os compartimentos de bagagem faziam ruídos que mostravam o quanto o avião estava desestabilizado no ar e quanto vulnerável essa máquina ficava quando mais próxima de Deus. Não era apenas eu gritando agora. As pessoas simplesmente ficaram tensas, todas elas. Quase, meu companheiro ao lado não se abalara… Gente chorando, gente rezando, gente se despedindo, gente apenas gritando… Eu, mais, claro! Pelo menos não me sentia tão sozinha. Só tive pena do menino que, não dando tempo de pegar um saco, vomitou dentro da própria mochila — quer dizer, não sei se a pena era dele ou de quem faria a limpeza…

                       — Aaaahhh turbulência, por que você existe!!?? — estava totalmente maluca e descontrolada! A cada sacudida, meu o coração disparava, e eu apertava a mão do rapaz ao lado, procurava para ver se alguém tinha cara de desespero e repetia um mantra na cabeça: “turbulência não derruba avião, turbulência não derruba avião “. Se é verdade, eu não sabia e nem queria saber! Até Jason ou Freddy Krueger estariam assustados se estivesse ali.

                       Nada diminuía meu pânico, a ponto de ver personagens dos filmes de terror! Inclusive, também, um padre, que do assento atrás, ao ver minha ojeriza, tentou rezar comigo para me acalmar. Oras bolas, para rezar não precisava de ajuda… O que precisava era que o avião parasse de chacoalhar. Então, existiria coisa mais esquisita do que ficar presa no meio de tanto espaço? A essa altura, somente desejava que meu telefone funcionasse para mandar um recadinho de amor para a minha família, porque tinha certeza que ia chegar em pedacinhos no chão. (Não tem barata, rato, lobisomem, cascavel, aumento de imposto ou cara feia que me assuste mais do que voar.  Medo de avião, na verdade, é medo de morrer, hein?).

                       Quando um sinal sonoro identificou que saíramos da zona de turbulência, gritos e rezas foram substituídos por palmas. O rapaz ao meu lado era o único que, o tempo todo, permanecera são. Perguntei-lhe como conseguira tal proeza.

                       — Vou lhe ensinar meu truque. Qual a diversão de que você mais gosta — perguntou-me sorrindo.

                       — Balanço. Um balanço preso por correntes a uma árvore — respondi de pronto.

                       — Ficou fácil. Então, imagine que está em um balanço, atado nas nuvens. Você parece voar. O que vê? O que sente? Idealize um mundo novo — continuou o rapaz.

                       Fui deixando a fantasia tomar conta da mente:

                       — Vejo a cidade como uma dança, o movimento das ruas é um bailado. Vejo um finalzinho de tarde típico de primavera, meio descaracterizado pela falta de chuva. Vejo o sol brilhante e amarelo, um amplo e inebriante azul, com nuvens róseas para se adivinhar os formatos.

                       — Muito bem! Respire lentamente, vá experimentando o peito, alimente a imaginação e pise o medo.  Pense somente em coisas boas, bonitas, engraçadas.

                       O embalo do avião e criar surpreendentes cenas foi lentamente acalmando minha agitação. O peso foi saindo com o rubor das faces, a respiração ofegante e o coração acelerado. Balançando nas nuvens, apreciando aquele céu, sentindo a brisa, senti-me agraciada, em paz. Fui ficando lúcida e segura. Senti-me grata. Senti que estava no lugar certo…

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                       — Não. Eu não tenho medo de avião e foi por isto que peguei na sua mão. Qual é mesmo o seu nome? — escutei, voltando à realidade e devolvendo-lhe o gesto com carinho.

                      — Senti o clima… E aí, amiga, como terminou essa sessão?

                       — Psiu!!!! (Mirou o marido do outro lado da sala.) Jantamos no aeroporto e depois fomos para o hotel em que eu tinha reserva. Ficamos juntos aqueles cinco dias no Rio de Janeiro.  Tudo muito discreto (com ares de saudade). Trocamos uns e-mails, algumas ligações depois que regressei, mas nunca mais nos encontramos

                       — Hummmm!!! — a interlocutora sorriu com ironia — não sei se levo fé…

                       — Melhor mudarmos de assunto? Faz tempo, era solteira, meninota. É apenas uma historinha para ilustrar como deixei de ter medo de voar — encerrei a conversa, sinalizando para meu marido que queria dançar.

18 comentários em “O Lugar Certo (Fheluany Nogueira)

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  1. Um início dramático com um desfecho leve, inesperado. O que diferencia uma amadora de vc é todo este domínio do idioma, esta técnica e trabalho profissional na história fazendo com que acompanhemos o trajeto das emoções da garota numa viagem inesquecível de avião. Conseguiu manter a minha atenção até o fim!

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  2. Obrigada, Iolandinha, pela leitura e comentário. Você sempre é a primeira em meus textos.Já havia escrito esse conto e o diminuí para um dos jogos do C&C; agora o aproveitei todo. É uma comediazinha meio romântica, leve mesmo. Beijos.

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    1. Eu me lembro do conto resumido no C & C, foi no jogo que a imagem era uma pessoa no balanço. Mandei um para o novo jogo da imagem, vc mandou também? Eu gosto muito de vc, querida. Jamais iria deixar de comentar seus contos

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  3. Que delicinha!
    Amei a descrição dos terrores! hehe eu tb tenho medo de avião, nunca andei, imagino q passaria por tudo isso ae!
    Meu pânico maior é o local fechado.
    O texto flui, senti a mudança de cenário no final, com a festa, o marido chamando pra dançar… Meio que chacoalhei ali, mas consegui me situar e achei mesmo o conto muito bom
    Parabens
    Abração

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    1. Que bom que você gostou da historinha! Sua opinião é importante para mim. Também tive dúvidas quanto à mudança de cenário, a protagonista está contando sua aventura a uma amiga, no salão de festas. Obrigada pela leitura e comentário. Beijos.

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  4. Fiquei até com um pouco de medo e olha que nem sei quando foi a primeira vez que viajei de avião. A descrição das sensações e do pânico da narradora está perfeita. Parabéns pela habilidade de envolver o leitor com a sua narrativa precisa. ❤

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  5. foi com medo de avião que eu segurei pela primeira vez na sua mão… pensava que fosse descambar para o romantismo da primeira vez, mas não… a sua protagonista pode ter medo de voar, mas só de avião. De voar nas asas do amor clandestino ela não tem medo não… gostei! Beijos e parabéns!

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  6. Do medo de avião a uma aventura amorosa de 5 (!!!!) dias no Rio de Janeiro! Fiquei com inveja dessa protagonista… Muito hábil a forma como você conduziu a narrativa brindando o leitor com uma reviravolta deliciosa no final. Parabéns Fátima! Uma sua fã aqui, você sabe. Beijos!

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  7. Querida Fátima,

    Tudo bem?

    Não há como não pensar na música ao ler seu conto.

    Um conto muito gostoso de se ler, como sempre, todos os seus. Interessante notar a coerência de seu trabalho, sempre trazendo a dualidade da vida a dois, ainda que dentro de uma vida feliz, de amor, monogâmica, ainda assim, há sonhos e lembranças que se nos escapam (ou às personagens) em um relance.

    Muito bonito.

    Parabéns.
    Beijos
    Paula Giannini
    (11)982497839

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    1. “Não tem mistério / Eu sempre acreditei / Que um dia eu fosse te encontrar / No lugar certo / Do jeito que eu sonhei / Com toda a certeza pra te amar ….” Valeu, não é mesmo?

      Obrigada pelos comentários sempre incentivadores. Beijos.

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  8. Olá, Fátima!

    Somente agora leio esse seu conto leve e divertido. Há um tal realismo nas cenas de medo – falo isso porque tenho um medo danado de voar e toda vez que embarco, vou rezando do começo ao fim da viagem e me perguntando como um treco tão pesado se mante´m no ar (kkkkk), mas comentário à parte, o realismo me trouxe para dentro do texto, seguindo com ele até o final, a agradável cena da festa que dá o toque sutil e final. Muito bom! Bjos

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  9. Olá, Fátima! Que conto gostoso de ler! A sensação do medo do avião é tão real que a gente acaba sentindo também! No fim levei um pequeno susto achando que isso teria acontecido quando ela já estava casada hahaha, mas foi apenas uma lembrança do passado – muito bem vivido! Parabéns por mais um belo conto. Abs.

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