E O PALHAÇO O QUE É? – Claudia Roberta Angst

Parecia sina ou alguma artimanha mal ajustada do destino. Os minutos começaram a desabar como uma sequência de peças de dominó, produzindo um triste, mas preciso espetáculo.

− Aqui há desesperos de todos os tons.

Tia Leninha tentava sorrir para não afligir ainda mais o pai que se debruçava sobre o leito onde jazia Diana.

− Se eu pudesse trocaria de lugar com ela.

O velho Gustavo sentou-se na cadeira encostada a cama, mantendo-se sua mão cobrindo a de  Diana. Suspirou e acertou os óculos sobre o nariz.  

− Sabe o que sua avó diria?Que ela está exatamente onde precisa estar. – falou esfregando a mão da neta como se quisesse afugentar o frio da sua pele.

Naquele último momento, o vento batia as portas dos quartos como se fossem asas de ave agourenta. Leninha podia perceber todos os sinais. O adeus estacionando suas sombras nos olhares dos médicos.

 − Infelizmente, não há mais nada a fazer. –disse Dr. Orlando com a expressão retesada – Providenciaremos para que ela fique o mais confortável possível.

− Como assim? Apenas desistimos? – Leninha descontrolou-se por um momento.  

− Sinto muito, mas como disse, não há mais nada que possamos fazer.

Diana vivia seus últimos instantes como sempre: cercada de atenção e amor extremados. Durante toda a sua vida fora invadida por uma urgência que a fazia mais afoita do que as outras crianças. Se os pulmões queimavam, ela dizia-se fênix. Se as pernas tolhiam-lhe os movimentos, ela alargava ainda mais o sorriso. Que mal havia em retirar de cada dia o que devia de fato pertencer a ela?

Menina de olhos profundos, com íris que reproduziam o verde acinzentado do mar em dias de tempestade, Diana abrigava uma sede infinita de reafirmar cada vontade. E os anos correram assim, na trilha da sua teimosia.

A última conversa, já com Diana instalada no leito hospitalar, foi tecida palavra por palavra em uma trama sem nexo, entrecortada pela forte medicação

− Vô, eu vi o palhaço.

− Como assim, minha menina?

− Ele quis… se esconder de mim, mas eu vi….

O fôlego de Diana foi oscilando entre compassos mal divididos de uma sinfonia deixada por finalizar. O tempo era matéria rara, tão rara que agora se desfazia em segundos preciosos.

− A pobrezinha já começa a delirar. – Tia Leninha deixou escapar o lamento entre lágrimas teimosas.

Pela janela, todos previram o mau tempo. O peso das nuvens no céu misturava-se ao emaranhado de dores que prendiam os que esperavam nos corredores, no anonimato das igrejas, na profusão de lágrimas derramadas em segredo.

Em outro lugar, acima de todas as dúvidas e dores, Diana retornava à pequenez inocente de seus primeiros anos. De imediato, reconheceu o céu deslumbrante, mais azul do que o anil que a avó usava para clarear a roupa branca. 

A menina era ela, que brincava com os pequenos bichinhos que habitavam o gramado nos fundos da casa. Regressava a um tempo em que tudo lhe despertava interesse como as nuvens no céu formando desenhos e letras que ainda desconhecia.

Sombras dançavam por trás dos lençóis alvos, bem esticados no varal. A brincadeira tão aguardada,escondida pela cortina imaginária. Não teve medo. Nem vergonha. Seus olhos cediam ao encanto e ela mal podia esperar pela surpresa. Então, Diana viu. Era ele. Nem tão alto como o avô, nem tão baixo como o irmãozinho que jogava bola mais ao longe.

A sua silhueta tremulava ao gosto do vento. Mas Diana era esperta, e na inocência de uma vida recém começada,trazia o olhar para perto das risadas.

Se fosse um mágico, haveria de ver um coelho saindo da cartola. Se fosse uma bailarina, teria sapatilhas e um tutu de tule rosa engomado. Mas sabia que era ele: o palhaço.  E mesmo que ainda não pudesse ver as suas roupas coloridas, o contorno do chapéu e todo o resto denunciavam sua presença.

            − Para você, princesa.

            Diana, tão pequena, sem razão de desconfiar, estendeu a mãozinha e pegou a linha terminada em laço de fita. No alto, atada em um nó invisível, estava uma bexiga tão vermelha que fez a menina pensar em sua caixa de lápis de cor. Um vermelho vivo, alegre, mas sem sangue.

− Agora vá, e volte apenas quando quiser brincar comigo.

O palhaço afastou-se, voltando para o esconderijo atrás do lençol. Sua sombra se desfez ao mesmo tempo em que a menina sentiu o beijo delicado do avô.  

− Pode ir, minha menina. – a voz trêmula mal camuflando os soluços que arranhavam a garganta e o coração.

E Diana, por fim, deixou escapar a bexiga, sua rosa tão vermelha, e correu. Mais rápido do que nunca, pelo gramado que ganhava imensidão e tantos cheiros. Avistou os lençóis estendidos,um a um, com tamanho capricho que pareciam formar um mar de brilhantes ondas brancas.

Correu e correu, com os pulmões abertos, e começou a cantarolar uma cantiga que sua avó lhe ensinara. Nada mais doía em seu peito. Mais perto, mais perto, até chegar à cortina alva de seus sonhos.

Levantou a ponta do lençol, ansiosa por desvendar o segredo. A grande mágica!

− Venha, querida. – a voz do palhaço ganhou ainda mais cores − Temos muito o que brincar.

A menina sorriu e os dois seguiram de mãos dadas.

9 comentários em “E O PALHAÇO O QUE É? – Claudia Roberta Angst

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  1. Uma história triste, narrada de uma forma delicada e envolvente. Aqui, mais uma vez, a morte surge suavizada na perspectiva da menina frágil e adoentada. Gostei do aproveitamento dado à imagem. Para mim, o palhaço sugere terror, para a menina, um escape. A narrativa permeada da lacunas no início, mas que mesmo assim revela o essencial ao leitor, evidencia o talento da autora. Muito bom trabalho! Parabéns!

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  2. Há uma poesia implícita em prosas que nos emocionam de alguma forma, principalmente ao se falar de morte, principalmente ao se falar dos momentos finais de uma criança com imagens tão pungentes e caras a qualquer infância.

    Há nessa narrativa a mesma beleza poética de palavras bem escolhidas, tecendo metáforas e imagens que nos arrebatam. Cito algumas que me chamaram a atenção: O adeus estacionando suas sombras nos olhares dos médicos.

    Pela janela, todos previram o mau tempo. O peso das nuvens no céu misturava-se ao emaranhado de dores que prendiam os que esperavam nos corredores […]

    Ou ainda em: Avistou os lençóis estendidos,um a um, com tamanho capricho que pareciam formar um mar de brilhantes ondas brancas.

    Há a beleza de não enxergar a morte como um final, mas como segredos de brincadeiras.

    Não há como deixar de se emocionar com esse belo trabalho. Parabéns!

    Curtido por 1 pessoa

  3. À medida que lemos o conto, vamos encontrando, construído com palavras, um muro mágico, que contorna a morte, com ternura, diante dos nossos sentidos, que foge da violência e solidão (“− Venha, querida. – a voz do palhaço ganhou ainda mais cores − Temos muito o que brincar.”). A imagem é explorada de forma cativante, emotiva. A graduação dos fatos serve para provocar sentimentos crescentes.

    A narrativa é madura, consciente, vagando por tristes sensações e condições impostas pela vida. Diana, então, pode se libertar de pequenas amarras e violar o desconhecido com o seu palhaço.

    Texto bem escrito, personagens bem construídos e cenas claras deixam a leitura fluir. A ambientação apresenta elementos comuns do drama, mas traduzida em metáforas criativas e a trama fechadinha agrada. Estilo e temática se fundem como é natural nos trabalhos de qualidade.

    Parabéns! Beijos.

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  4. A morte tratada com delicadeza. O palhaço vem buscar Diana a para livrá-la de tudo o que é ruim – doença, tristeza, desesperança. A autora transformou a imagem (que tem uma atmosfera ameaçadora) em algo bom, delicado. Aliás, delicadeza é a palavra-chave do conto.

    O tema é pesado, a imagem, assustadora, mas o talento de quem escreveu torna o texto leve e tocante, em doses corretas. Diana é um personagem adorável, o palhaço e a avó ajudam o texto a flutuar, mesmo diante da inevitável tragédia.

    Achei uma preciosidade, parabéns.

    Curtido por 1 pessoa

  5. Palhaços me dão calafrios, mas nesse caso, atenuou a imagem da morte, derradeira e final, como uma cantiga para enganar adultos e disfarçar o que é mais terrível em nosso conhecimento: tudo se esvai em algum momento. Tudo o que se constrói se desfaz. Nada permanece. O alento, embora desconhecido por nós, seja haver alguma coisa além da vida.
    Um texto triste, debaixo de um véu de suavidade.
    Parabéns!
    Um grande e carinhoso abraço!

    Curtido por 1 pessoa

  6. O conto baseou-se em uma imagem que muitos consideram assustadora. Geralmente, o palhaço desencadeia fobias, traumas, histórias de sequestro e verdadeiro terror. Aqui, a autora trabalhou de forma diferente esse tema, concentrando-se mais na imagem da criança curiosa e nos balões que surgem por cima do lençol. A inocência da pequena menina gerou uma narrativa diferente da que estamos acostumadas a relacionar com a figura do palhaço.
    Diana está vivendo suas últimas horas, cercada pela família em um hospital. Não se fala qual o seu mal ou o que aconteceu de fato com a menina, mas em algum momento surge a ideia de “pulmões queimando”, então suponho que seja alguma doença grave relacionada ao sistema respiratório.
    No entanto, a história triste de Diana se dilui em meio à fantasia criada de um palhaço que a convida a partir com ele, na verdade, ele chama a menina para brincar. Oferece um balão vermelho talvez representando a fragilidade de uma vida (vermelho = sangue, vida) suspensa.
    O conto está bem escrito, sem problemas que entravem a leitura. Ritmo calmo, com pausas para que a ideia do desligamento de Diana se faça mais suave aos olhos do leitor.
    Parabéns!

    Curtido por 1 pessoa

  7. Olá Contista querida,

    Tudo bem?

    Existe uma espécie de inversão na morte quando ela é a de uma criança. Aqui, não é a avó que parte, mas a neta, não a tia ou o pai, mas a sobrinha, a filha. Assim, a autora deste conto trabalha o enredo ousando lançar mão de algumas inversões nos clichês do imaginários dos leitores.

    Aqui, o palhaço que se insinua como o de terror, tanto na imagem escolhida para o desafio propriamente dita, quanto na suposta premissa em si, mostra-se como algo ingênuo, bom, e que reverte a perspectiva da morte como algo leve e sutil. Um jogo de criança, para a inocência de uma criança que sabe que vai partir.

    Triste, belo, emocionante, maduro e muito bem escrito.

    Parabéns pelo trabalho.
    Juntas, crescemos como autoras e como seres humanos.

    Beijos
    Paula Giannini

    Curtido por 1 pessoa

  8. Talentosa Contista,

    Um texto muito bonito e triste, belamente triste.
    Adorei como conseguiste aliar a imagem do desafio de uma forma muito plausível à tua estória. Parece que a imagem pertence ao teu conto. E acho que pertence agora.
    A estória é triste, claro, mas ela traz a leveza e a inocência da infância junto com ela.
    Interessante como o “anjo” de cada pessoa carrega a imagem que lhe é mais aprazível. Para uma criança, um anjo pode ser um palhaço, o qual normalmente remete a lembranças aterrorizantes, para vários adultos.
    Não há complexidade no enredo, nem há novidade ao final, mas não precisa nada disso. Há uma narrativa bastante sensível, que nos faz enxergar as ações do conto.

    Parabéns!

    Curtido por 1 pessoa

  9. Olá amiga, que jeito delicado e belo de receber a morte. Se Deus existisse crianças não morreriam, mas já que morrem que seja assim. .

    Imagem: “O palhaço afastou-se, voltando para o esconderijo atrás do lençol. Sua sombra se desfez ao mesmo tempo em que a menina sentiu o beijo delicado do avô.” – quase um portal aberto entre um mundo e outro.

    Acho que todo mundo deve ter um palhaço especial para brincar quando chegar a hora. Doce e enxuto conto. Consegue tocar de forma a transformar a foto em algo vivo.

    Curtido por 1 pessoa

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