Homem de Palha – Fheluany Nogueira

 

 

O passado nem sempre foi justo. Por conta dele, às vezes, o futuro pode ficar comprometido. Pode estar ameaçado por um passado que voltou…

 

Das sombras dos lençóis, saíam homens de roupas coloridas, calças infladas e chapéu, varando dia e noite, por quintais perdidos. Ofereciam balões e encantavam. Sorriso malicioso, sapatos enormes, andar desajeitado. Melinha se divertia…

— É perigoso essa menina deixar se enlevar assim — retrucava a avó — É muita liberdade!

Que mal haveria? No país das nuvens, pairavam os semi-sonhos. As cascas mansas dos desejos quebrados voavam leves. As cores boiavam e os olvidos se batiam em queixas nas cascas dos desejos partidos. E lá, nenhuma figura se definia em verdade e dominavam as deliquescências. Uma sombra se perdia na outra, sem término. Tudo boiando, pairante, em camadas.

No país dos ventos havia uma criança sorrindo. Inclinado o tronco, erguida a cabeça olhava os lençóis no varal e via além deles. A risada se confundia ao vento que carregava folhas secas e poeira, ali ficava só a menina a brincar. E o vulto com ela, só o vulto não foi; e o vento arrastou tudo, mas a criança ficou… O quase longo inflado vestidinho azul com poás brancos, os pés descalços; ela sorrindo, para sempre, estátua ficada na imensidão varrida pelo vento — na fotografia batida pelo pai.

 

— O mesmo palhaço da infância, parado ali, sob o luar? — a mulher-menina se admirou.

 

Havia algumas novidades na cidadezinha. Um circo armado na praça, com aquelas coisas de sempre: palhaços, trapezistas, mágico, teatro… Um dos artistas era um rapaz que tinha mania de briga de cães. No cidadezinha, havia uns homens que gostavam das rinhas, proibidas por lei, mas ainda praticadas de forma clandestina. E, nenhum cão dali podia com o do sujeito do circo. Era um pitbull que reunia em si todas as virtudes dos grandes guerreiros: resistência e coragem indomável. Porte médio, pelagem curta, musculatura bem definida, crânio chato, focinho largo e profundo. Matou vários animais da cidade e o dono dele ganhou muitas apostas.

 

Naquele sábado haveria uma surpresa no espetáculo do circo:

— Valorizamos os artistas locais! Venham ver o espetáculo! Maria Amélia Santos terá o papel principal no teatro e mais outros artistas daqui representarão os soldados — um dos homens do circo gritara, em estardalhaço, pelas ruas, desde o início da semana.

O circo lotou. Dava gosto ver a Melinha. Todos os rapazes presentes só lhe olhavam rosto e corpo, imaginando safadezas. O mini vestidinho azul com poás brancos, os pés no sapato alto; ela sorrindo, para sempre, estátua ficada na imensidão da lona — uma fotografia colorida batida pelo namorado.

 

O circo parou bastante tempo no lugar. O dono do cão de brigas tinha uma fêmea da mesma raça, que estava prenha e deu tempo de nascer todos os filhotes antes do circo ir embora. Que decepção! Nasceram cãezinhos pretos, amarelados, peludos, sem pelagem, de todos os tipos; todos mais para vira-latas. Como podia ter acontecido aquilo? O rapaz ficou inconformado, mas não havia o que fazer.

 

Quando partiu, o circo levou Melinha. O namorando era o filho do dono do circo, o sujeito que era dono dos cães — o palhaço. Muitos ficaram furiosos com ela e com ele. Com a moça, por desprezar os rapazes dali e fugir com alguém que nem conhecia direito. Com ele, por levar uma das moças mais cobiçadas da cidade. A mais cobiçada.

No dia seguinte da saída do circo, um morador local, muito brincalhão, falou:

— Ele levou a Melina, mas deixou  aqui dez pitbulls purinhos para melhorar os nossos bichos — mostrou uma cachorra rasga saco, com dez filhotes. Todos iguaizinhos, nenhum pé duro. — São as crias de raça. Vi o palhaço contando vantagem dos animais dele e calculei que as cadelas tinham parido mais ou menos junto. Trocar os cãezinhos foi fácil…

 

***

 

— Você é mãe? — um conhecido encontrou Melinha um dia, em cidade distante.

— Sou. Fui. O bebê morreu…  — a moça parecia ter se refugiado numa ilha.

— Você não ficou feia depois de casada — ele experimentava com cautela, pronto a mudar de rumo, ou a imprimir um tom de maior respeito ao que dizia. — Você está até mais bonita, esbelta.

— Quer ficar com ela? —  A voz remota do palhaço-marido vinha da tenda. — Tudo tem um preço.

 

Lá no inconsciente, palhaços podem ser qualquer coisa, menos engraçados. Melinha foi a pouco e pouco sendo substituída por Tina, Regina, Cris. Todas se confundiam. Percebia, então,  outro homem atrás da máscara. O doce arlequim se fora… restou o farsante. Antimatéria e negativo de si mesmo. A imagem constante da infância, o bufão encantador, não mais existia. Um peso enorme se fazia brusco e repelente.

 

Melinha percebeu o tempo, suspiro cansado. Limpou a cama, empurrou suavemente a porta, despediu-se ao compasso de uma música que só ela ouvia. Atravessava a rua. De repente… O corpo quebrado pairou no ar, molhado de chuva, coberto de laranjas maduras. E o cheiro denso das frutas molhadas encheu o espaço, incomodou os passantes.

Amélia sentiu uma poderosa onda brotar do âmago. A velha imagem pareceu-lhe surgir obscuramente do fundo do tempo — o divertido palhaço trazia-lhe balões coloridos. Menina-mulher outra vez, muito criança, três, quatro anos. Emoção indefinível. Chorava, doía… O choro se confundia ao vento, choro-vento-lamento; o vento seco secava as lágrimas, soldava o sal na face alada, só edificada a menina em pranto. E  o vulto voltou, no ímpeto de morte do vento. E o vento arrastou tudo, até o sal do rosto, e ela ficou chorando. E o vento levou seu pranto, mas a criança ficou: o longo rasgado vestidinho azul com poás brancos, os pés feridos, em longo choro sem lágrimas, silencioso, para sempre, estátua ficada na imensidão varrida pelo vento.

 

 

 

18 comentários em “Homem de Palha – Fheluany Nogueira

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  1. O grande mérito aqui está na integração entre linguagem, narrativa e enredo. A história da menina que foge com o circo é comum mas aqui, o talento da autora, sobretudo no uso da linguagem e das imagens que evoca, constrói uma narrativa única. Nos sentimos na pele dessa menina cheia de ilusões que persistem mesmo quando frustradas. Gostei muito! Parabéns pelo trabalho! Tenho um palpite sobre a autora…

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      1. Acertei total! Você não me engana jamais. Seu estilo é inconfundível – léxico e construções frasais. E eu adoro!

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  2. No país dos ventos, tudo o que resta é camadas. Como no texto, o enredo e a linguagem vão editando a vida de uma menina-mulher cheia de sonhos, mas que acaba iludida pelo homem que a arrebatou. Sem filho, vendida, usada como uma laranja madura que se come até os bagos. Há uma beleza no enredo, que se reflete na linguagem. Chamo a atenção apenas para “olvidos”, do verbo olvidar ou ouvidos? Pareceu-me um erro de digitação. No mais, um belo conto, melancólico, mas tão real em tantos rincões desse imenso mundo que muitas vezes parece um circo de horrores. Um ótimo conto.

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    1. Obrigada, Sandra. Tenho um carinho especial pelos seus comentários que sempre me ajudam. Quis usar o verbo “olvidar” mesmo – no sentido de abandonos, esquecimentos, omissões. Beijos.

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  3. Um conto diferente, não sei se tive alcance para entender. No início, a história tem uma linguagem mais inacessível, poética, descritiva, feita para que o leitor viaje em busca dos sentidos que as frases podem ter. Depois a linguagem muda, adquire um feição mais coloquial e a história flui melhor. ´Há três momentos da menina da imagem: Quando é criança e o pai a fotografa, quando é mocinha e foge com o circo, quando é adulta e se arrepende de ter ido embora com o palhaço. Pelo entremeio há a história das rinhas de cachorro e da cadela que pare cãezinhos mestiços, o que fica depois elucidado quando um dos locais revela que trocou os filhotes. As três Amélias se misturam nos momentos traçados pela autora e eu fico com a impressão de que há muito mais para ser decifrado, mas a falha é minha que não compreendo as referências. De todo modo, um conto muito belo, com um título que adorei. Beijos e boa sorte

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  4. A história é densa e é possível esmiuçar sentimentos e vivências dessa mulher múltipla, ingênua e vivida. Vívida. Melinha encarna muitas mulheres, porque podemos ver muitas através dela Apesar de ser uma história linear, no meu entendimento, há, no entremeio, linguagens diferentes. A primeira é a poética que se dissolve na medida em que a menina se torna mulher. Parece que há uma perda de encantamento e o sonho se torna realidade, mas não uma realidade de sonho.
    Gostei muito desse texto!
    Um grande e carinhoso abraço!

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  5. Talentosa Contista,

    Temos aqui um texto bem forte, mas carregado de metáforas e lirismo.
    A meu ver, o conto retrata a vida e os sonhos de Melinha, menina desde cedo com os pés no vento, que se deixou encantar pela arte e pelo amor… será? será que amor e sonhos encantam? será que nos sustentam?
    será que nos seguram os pés na terra? essas perguntas vão surgindo, mas não há resposta certa.

    É um texto lindo. Particularmente, eu achei um tanto carregado de metáforas. Isso não é um defeito, mas é algo com o que eu me preocupo, ao escrever, porque posso não me fazer compreendida e talvez perder um leitor que não queira repetir a leitura.

    Gostei bastante. É difícil escrever com essa capacidade de elucubração!
    Parabéns!

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  6. Conto interessante pelas diversas leituras nas entrelinhas e pela simbologia oculta na escolha das palavras e cenas. O título remete ao “palhaço”, pois a palavra vem do italiano PAGLIACCIO, que é derivado de PAGLIA, que significa “palha”. Esta origem se dá porque a palha era usada para preencher as roupas coloridas dos palhaços para os deixar mais engraçados. De outro lado, a palavra “palha”, além do significado de “tiras secas de partes de plantas”, também traz o sentido de coisa de pouco valor, de pessoa aborrecida, comum em expressões populares que parecem combinar com o palhaço do narrativa, como:

    • dar palha a (enganar com boas palavras ou encher de palavras inúteis);
    • não levantar ou não mexer uma palha (ser preguiçoso; não ter trabalho);
    • por uma palha (sem nenhum motivo importante);
    • fogo de palha (empolgação que dura pouco tempo).

    O “país dos ventos” pareceu-me uma metáfora para a infância e a protagonista sonhava com o palhaço cômico, de leveza no coração. Quando a imagem se concretizou, mais tarde, a mocinha imaginou, acreditou que se tratava da mesma figura. Foi embora com ele, mas percebeu que estava diante de outra imagem – o palhaço assustador, que magoa. Era tarde. Distraída, a mulher é atropelada por uma carreta que transportava laranjas. Na agonia, é confortada, na dor, pela antiga visão do palhaço.

    Se o enredo é simples, a linguagem é bastante elaborada — devaneios com poesia, realidade informal e corriqueira. A autora trabalhou bastante… Gostei das fotografias que servem para a marcação do tempo e para a alternância do modo de ver o palhaço, dos cãezinhos que serviram para dar um tom de humor: o circo roubou a moça mais bonita da cidade, mas deixou animais de raça, para compensar. A cena do atropelamento e morte ficou sutil e lírica.

    Parabéns pelo trabalho. Beijos.

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  7. O título trouxe-me a lembrança do personagem Espantalho de O mágico de Oz. Sem cérebro, ele não pode ser sábio. Há também um filme chamado O homem de palha (1973) no qual há o desaparecimento de uma moça.
    Também pensei em associar o palhaço que seduziu Amélia com alguém feito de palha, cujo amor é fogo de palha, que nada dura, Enfim, são várias as possibilidades de interpretação deste texto, que evolui cheio de metáforas, um caminho perigoso pois pode se transformar em um verdadeiro labirinto de palavras.
    Há pequenos deslizes de digitação, mas que são facilmente ignorados, pois em nada impedem a apreciação do texto. Só fiquei curiosa para saber se foi proposital : estátua ficada na imensidão varrida pelo vento. O verbo é mesmo ficar ou fincar? Pergunto porque costumo fazer essas alterações, posicionando uma palavras onde se espera outra. Achei uma possibilidade interessante.
    Amélia parece se interessar pelo circo e por palhaços desde criancinha, e com a inocência de uma menina, abandona tudo: família, namorado, cidade, para viver uma aventura romântica. Decepciona-se e se deixa levar pela depressão,
    Gostei bastante do final, trágico, mas bem descrito, repleto de significados e imagens. Laranjas, palhaços, dor, alívio, vida e morte.
    Parabéns!

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    1. Cláudia, você realmente lê o que vai na nossa cabeça. Pensei, sim, nO mágico de Oz e pensei na palha pela leveza dela, no ” fogo de palha”. Não me enganei não, é que gosto de complicar… é “olvidos” e o verbo “ficar”, no sentido de restar. Obrigada pelo simpático comentário. Beijos.

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  8. Olá, Contista querida,

    Tudo bem?

    Seu conto une as duas pontas daquilo que, ao meu ver, é necessário para uma boa narrativa literária. Uma boa trama e um trabalho cuidadoso e diferenciado da linguagem.

    No que toca a trama, o enredo aparentemente corriqueiro da menina/mulher que cresce em meio aos sonhos, apaixona-se por alguém, pela vida, é tratada com indiferença pelo marido, pelos homens, menos que cadelinhas filhotes, até o seu derradeiro dia, é tratado de forma poética, tornando-o único, assim como única é a vida de cada uma de nós.

    Já no que tange a linguagem, é lindo perceber o modo como a imagem do desafio vai costurando a passagem de tempo como em um filme, da menina para a mulher, da mulher para a senhora, da senhora, para o nada, um nada com cheio de laranjas, de beleza, de doçura.

    Parabéns por sua verve ousada e deliciosa.
    Juntas, crescemos de forma linda em nossos ofícios de escrever.
    Beijos
    Paula GIannini

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  9. Olá, amiga, sempre sonhei em fugir com o palhaço, daí minha falta de noção e humor questionável.

    Essa imagem me marcou: “Lá no inconsciente, palhaços podem ser qualquer coisa, menos engraçados.” – Estou lendo o sétimo conto do desafio e, até agora, todos são marcados pela melancolia de diversas formas. Este aqui tem algo especial, a melancolia de nossas escolhas e paixões.

    Li um “olvidos” que não entendi se seria “ouvidos” ou outra coisa.

    Uma coisa que me chamou a atenção é que a personagem nunca perdeu o lirismo da vida, mesmo com as agruras.

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  10. Obrigada, Catarina, pelo construtivo comentário. Usei “olvidos”, verbo olvidar, significando abandonos, esquecimentos, limbos. Estava com saudades dos seus textos. Sou sua fã. Beijos.

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