
Juliana tinha um segredo: ela podia voar. Descobriu ainda criança, depois de um dia na praia. Estava feliz, cheia de energia, e não conseguia dormir. Ficou andando pela casa sem saber mais o que fazer em sua primeira insônia. Foi aí que viu a lata de biscoitos.
A guloseima não estava na prateleira mais alta, mas também não estava baixa o suficiente para que conseguisse pegar. Colocou o banco perto do armário, porém o móvel oscilou e ela quase foi ao chão. Desceu com as pernas tremendo. Abriu a gaveta e subiu nela. A madeira gritou, mas não cedeu. Esticou as mãozinhas o mais que pode e parecia que seus braços se alongavam, como os do homem elástico, tanto que conseguiu tocar no recipiente. Mas quando olhou para baixo foi que se deu conta de que seus pés estavam muito acima da gaveta. Ela flutuava! No desespero da súbita constatação, acabou se desconcentrando e caindo, deixando a lata rolar pelo chão e fazer barulho suficiente para acordar seus pais.

O trauma da queda e o castigo pelos biscoitos fizeram com que guardasse segredo sobre a sua nova habilidade, e, apenas quando estava sozinha, testasse pequenos voos. Além da própria Juliana, só quem sabia do segredo da menina era o gato Petisco, que ela criava desde pequeno.

A capacidade não dependia exclusivamente de sua vontade, na verdade variava de acordo com o seu estado de espírito. Quanto mais emoção, mais voo.
A habilidade às vezes era uma verdadeira maldição, Juliana tinha que usar o máximo de autocontrole nas brigas com outras crianças. Uma vez ficou tão fula da vida que subiu uns três metros no caminho da praça para casa. Só parou porque se agarrou aos galhos de uma goiabeira. E ficou lá sentada na copa da planta até o coração voltar ao batimento normal.

Já mocinha, relutou bastante para arrumar namorado – temia decolar até as nuvens no primeiro beijo. Seu pavor era maior que sua curiosidade, e os anos iam passando sem que a mocinha se envolvesse com qualquer pessoa. O pai, preocupado que ficasse solteira para sempre, tratou de arrumar um pretendente para Juliana. Quando, afinal, se viram, a menina se alegrou de ter encontrado o namorado ideal para ela: Rafael era tão sem graça que ela não corria risco algum de se afastar do chão.

O namoro seguia sensaborão por meses e anos. Foi só quando se transformou em noivado que Juliana percebeu seu erro. Enquanto servia como disfarce, Rafael era o par perfeito para enrolar sempre e casar nunca, mas seus pais tinham outros planos.

Quando se deu conta estava provando bolos, olhando revistas, decidindo convites e tirando as medidas para o vestido de noiva.
Um dia juntou toda coragem que tinha e confrontou a gangue inteira – pais, sogra e o bobão do Rafael que conseguiu manter a cara de parvo mesmo depois dela comunicar o fim. Juliana estava irredutível.
Foi um bafafá dos infernos. Mãe chorando, sogra praguejando, pai gritando e Rafael olhando para ela com os olhos bovinos de costume. Quando as visitas foram embora, Juliana apareceu com uma mala na mão e o Petisco na outra.
– Vou embora!

Diante da ameaça da filha, o pai de Juliana a chamou até o escritório alegando que precisavam conversar. Assim que entraram o homem saiu, trancando a porta por fora.
– Fica aí até mudar de ideia!
Ficou só o tempo suficiente para abrir a janela. Não era a primeira vez que fazia voos mais longos. Subiu, decidida, no parapeito da janela e se jogou no ar. A gente lá embaixo não levantou a cabeça para testemunhar a beleza do seu gesto, a grandiosidade da sua decisão. Juliana simplesmente seguiu o seu caminho, por que sim…Porque estava escrito, e pronto.

Passou anos sem dar notícias. Enquanto os pais aguardavam, Juliana vivia. Morava na Europa onde ninguém se importa com a vida alheia.
Abriu uma empresa de entregas rápidas: era a única funcionária. Casou com um engenheiro de minas e com ele teve filhos normais. Voava para onde queria. Depois de um tempo chegou um postal à casa antiga sem endereço do remetente. Poderia ter cruzado o oceano e entregado a eles pessoalmente, mas preferiu mandar pelo correio comum. Por segurança.
Ownnn… q delícia de conto! Sinto-me muito honrada, minha Amiga Secreta! Não sei como vc fez, mas de alguma forma mágica captou a minha essência toda. Eu realmente sabia voar quando era criança. E realmente só o meu gato sabia. Mas o nome dele era outro…. Eu adoro biscoitos e por alguns deles eu faço loucuras! E ainda hoje tem umas coisas que me tiram do chão fácil, fácil. Não tenho palavras pra agradecer às suas palavras, querida amiga contista! Muito obrigada!
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Que bom que vc gostou, mesmo conhecendo muito pouco de vc, parece que acertei, né?
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Uau! Adorei! Presentaço para essa amiga oculta que deve ter ficado super feliz! 👏
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Eu amo contos com esta pegada de realismo fantástico, então esse me agradou em cheio. Um conto doce, precioso, com uma linguagem direta e passagens muito charmosas. Parabéns à homenageada, pessoa que muito aprecio, e à autora, que deve conhecer muito a Juliana ou ser bastante intuitiva para inventar uma história com tantos elementos de afeto da presenteada. Um abraço para as duas e que esta amizade se prolongue para sempre.
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Que lindo, e ainda cheio de imagens.
Amei.
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Que delicinha!
amei isso: temia decolar até as nuvens no primeiro beijo.
rsrs
tudo muito fofo, Juliana deve estar voando até agora!! 🙂
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Um conto leve e solto, de leitura agradável e com uma história que encanta. Parabéns pela escrita. Beijos!
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Que beleza, que doce e com tanta essência. Feliz 2019 para vocês!!
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Deliciosamente escrito !! Encantos que fazem voar em delicadezas felinas !! Muitossssssss Parabéns a ambas !!
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Oi, Ioiô,
Voltei para comentar.
Que conto lindo, que delicadeza, que amor, que magia. há sempre algo que me seduz na realidade fantástica, não sei o que é. Talvez o flerte entre esta e a psicanálise, não sei. A Ju é uma sortuda por ganhar este conto.
Beijos
Paula Giannini
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História criativa, simbólica e delicada – uma homenagem e tanto para a amiga. E, altos voos para a Juliana! Parabéns, Iolanda, você sempre se aprimorando, tão intensa. Talvez não tenha percebido, mas você também
voa… Excelente texto! Beijos!
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Coisa mais hiper-fofa esse conto, amiga! Inveja da Juliana… Beijos
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Acho que o sucesso da Juliana é ela representar a criança sonhadora que ainda vive em nós, e sempre desejou voar. Quem nunca???
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