Mais um Natal. O mesmo Natal?
Procuro em vão por novidades a minha volta. A árvore parece cada vez mais mirrada, exilada no canto da sala. As luzes, com seu pisca-pisca irritante, que na infância pareciam estrelas cadentes, agora se revelam meros vagalumes decadentes.
No chão, o vazio de promessas. Limpo, quase reluzente.
Reajo ao calendário como criança à espera do Papai Noel. Ansiosa demais para contar os dias, apontando ausências que não me cabem mais. Adormeço sonhos com cantigas e promessas. Penso em escrever cartas, talvez bilhetes. Bobagem! Sei que nunca serão lidos.
O tempo recolhe meus sentimentos, atirando-os a um mar de remotas possibilidades. Tenho pressa de chegar ao momento certo, de me banhar em lunares repetições, reabrir presentes esquecidos em algum lugar que nunca mais visitei.
Lembro de outros tantos Natais, com um misto de alegria e começo de adormecido arrependimento. Lembro dele. Lembro de mim mesma. Nossos abraços que compunham poemas, abraços sem outro destino. Quando tecíamos redes de estrelas para nos proteger de invasores. Onde tudo isso foi parar?
O essencial invisível se tornou dispensável.
Curo dúvidas com provocações ao espelho imaginário, escuto as acusações mútuas. Calculo minhas chances, todas as horas que se abrem na noite (in)feliz que já se anuncia. A lua muda de fase, enrubesce, tinge-se de sangue, ou serão as renas já passando em desalinho pelas nuvens?
Entediada, risco números de telefone que não atendem, embrulho presentes que não serão abertos, acendo velas temendo o vento que talvez as apague em breve. Em um sopro. O sopro da vida que não me cabe nos pulmões.
Teclo mensagens, visto roupa nova, me perfumo e escolho como acessórios muitas culpas. Em minutos, junto metades. Metades de mim, do que já resta tão pouco.
Faço mais uma oração. Peço por todos, peço por mim, peço que tudo termine em mim. Parte de mim sabe que serei ouvida. Outra parte, balança a cabeça e ri da última tentativa. Agora, já foi. Agora, tudo já é passado.
Uma vida cheia de ausências.
O peso quase inexistente das horas me deixa flutuar fora da realidade. Esta versão antiga de mim, nunca revisada ou dita. Meu coração segue despedaçado em intenções de um outro Natal. E o toque das lembranças recomeça como uma reconhecida e temida melodia.
A memória calça passos pesados, desviando-se de sombras que já se convidavam como presença e compromisso. Apesar do que vejo, e principalmente do que não vejo mais, não me sinto de todo modo triste. É mais do que isso. É uma melancolia que me invade como naqueles dias pré-natalinos que me sentava para assistir os mesmos filmes e derramava as mesmas lágrimas, emocionada com o esperado final feliz.
Quando criança, tudo parecia mágico. Agora percebo que as festas de final de ano carregam um tom menos doce. Talvez, eu não queira rever o anúncio do meu fracasso. Porque se estou aqui, sozinha, eu e minhas lembranças, devo ter fracassado. É o que sinto.
Onde está a família, grande e barulhenta? Onde está o meu companheiro de tantos acontecimentos, felizes e outros nem tanto? Onde estão todas as pessoas, os personagens de uma vida inteira? Alguns mortos, outros feridos e distantes. Uns por minha culpa, outros abduzidos pelo destino.
Aqui, nesta casa que já foi de minha avó, escavo lembranças. Recordo-me da sala cheia, da correria das crianças escada acima e abaixo, dos enfeites de vidro brilhando como joias pendentes sobre o fundo de folhas do pinheiro. Pinheiro de verdade. Era uma época assim: tudo de verdade. Ou é como me recordo. Verdade?
Os fatos vividos, os festejos coloridos, a calmaria e toda tormenta, parecem deslizar pelas minhas pálpebras, tornando o passado um filme com personagens que ainda consigo reconhecer. Sorrio sozinha. Ou talvez eu não esteja tão só assim.
Posso sentir o aroma das frutas secas, do peru sendo assado no forno um tanto antigo, mas ainda eficiente de Vó Gracinda. Sinto a dentada apresada nos biscoitos enfeitados com camadas generosas de cobertura. Símbolos natalinos, desenhados com capricho. Tudo tão vivo, tão colorido, como se nunca tivesse ali um momento triste a macular este cenário perfeito.
Escuto alguém reler uma passagem da Bíblia, escolhida para a ocasião. Outra pessoa fala sobre o aniversariante do dia, as crianças se espantam com o nome de Jesus. Não era o Papai Noel?
Penso em separar algo para comer mais tarde, quando o estômago pedir trégua. Talvez quando a hora da ceia se fizer anunciar…
Vejo Moleque, o pequeno Yorkshire, que se achega com as patinhas sujas de algo grudento e brilhante. Vai deixando um rastro de purpurina pelo caminho até parar resoluto. Senta-se no tapete da sala que se estende como um mar vermelho sob a mesinha de centro. Cheira as fibras de lã envelhecida, como se buscasse um esconderijo que talvez lhe reserve um osso ou algum outro petisco.
Moleque se vai como todas as outras lembranças. Sorrio para o espaço marcado pela sua ausência. Noto uma pequena elevação na linha do tapete. Algo fora do esquadro, que irritaria qualquer pessoa com TOC, mas que quase me passou despercebido. Nunca fui de me atentar a esses detalhes de simetria, nem nos outros, muito menos em mim.
Olho novamente para aquele ponto específico do manto que cobre os tacos de madeira. A leve ondulação no tapete da sala, coisa de milímetros, mas que já começa a cutucar minha curiosidade.
Viro e examino o avesso do pesado tecido. Vejo entre os fios da trama, rabiscos, uma caligrafia apressada, como se fossem pequenos relevos, nomes e segredos bordados. Ali aparecem gravados os destinos de todos os moradores da casa, da minha vida, a minha família. Como se todos os amores, pudores e espinhos pudessem ser escondidos, jogados para baixo do tapete.
Quem fez isso? Quem se atreveu a bordar a história de mais de uma geração? Quem temeu perder o rumo de suas próprias raízes? Quem mais a não ser aquela que fui?
Tarefa indevida. Tarefa imposta pelo medo. Capricho realizado com a felicidade de quem ainda vive o próprio enredo. Os nomes escritos no avesso da trama do tapete são como pedidos bordados na barra da anágua de uma noiva sorridente. A comparação me deixa satisfeita e com os olhos cheios de uma água sem barragem.
Choro. Talvez de tristeza. Talvez de uma alegria guardada. Talvez porque “nunca mais” seja tempo demais. Estou tão cansada que nem percebo as janelas se abrirem com o vento. A árvore ainda pisca-pisca, a vida ainda vem e vai.
Não me lembro de ter deixado o presente sem fechar, só de abrir o passado. As cortinas retornam a uma delicada dança, desvelando o que nem sei se desejo ver. O vento, mais forte do que minha vontade, promete tempestade.
Olho para o bordado ainda em minhas mãos, o tapete sem peso, os nomes e destinos desfazendo-se em partículas, flocos de um passado sem volta. Verdades transparentes e secas. Como meus sentidos e caminhos, como tudo o que já foi um só olhar.
Levanto-me à procura de alguma saudade perdida. Dou-me conta de que não possuo mais tempo para isso. Papai Noel ainda não veio, mas já não posso esperar.
Só conto com o reflexo tênue nos vidros das janelas que já me acenam adeus. Abertas, convidando à fuga, só revelam o vão da noite com a escuridão de costume.Papai Noel virá?
Não, eu não acredito em Papai Noel. Nem em fantasmas. Eles não existem. Nunca existiram. Repito a negativa enquanto me deixo atravessar pela parede.
Feliz Natal!
Tristeza, desapontamento, ansiedade, dor emocional, tudo motivado por expectativas inalcançáveis e fantasias relacionadas ao Natal; o reviver de memórias de um Natal dos “velhos tempos”; impossibilidade de estar com os familiares ou amigos, por luto, separações e conflitos ou até mesmo doenças na família.É verdade: quando se passou por perdas, separações ou morte de pessoas queridas, no Natal essa perdas parecem doer muito mais. 😢
É assim que a protagonista vê o Natal, com tristeza e até como um fardo. Poderia ser a oportunidade de fazer reparações, desfazer mágoas e recuperar laços afetivos rompidos ou perdidos, mas nem sempre é possível. Uma reflexão conformada de um ser conformado pela tristeza. Não houve uma morte física; pior, talvez: morte de amor, de sentimentos, de algo bom que nasceu de uma situação complicada e que se perdeu…
Parabéns pela história interessante, realmente um recorte do cotidiano. O clima não chegou ao trágico, mas há uma indisfarçável nostalgia, um sutil sentimento de inutilidade nas coisas e nos contatos humanos; um jogo de palavras, que leva o leitor a pensar. Gostei da forma como conseguiu expressar a ambientação, que parte das sensações da personagem. Texto escrito de forma sincera. A expressão pedida ficou bem encaixada e sugestiva.
Que o seu Natal e de seus entes queridos tenha muitos papais noéis, ideias positivas e tempo para curtir memórias e uns aos outros. Beijo, beijos…
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Vi-me neste conto. Natal para mim está cada vez mais difícil de viver. Uma época que antes servia para reunir hoje a quase extinta família. Penso: será que os adultos da minha época de criança também se sentiam assim, e apenas as crianças não percebiam e hoje vive a mesma situação? Espero que estes sentimentos sejam apenas para um conto belo e profundo e que seu natal real seja muito feliz e 2020 um ano cheio de alegrias. Abraços ❤
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Oi, amiga Contista!
Bastante denso seu conto….beirando o desespero, diria – eu sei, já vi o desespero e é exatamente assim, uma sensação de estar morta, estando viva – ou quase.
No caso, vi que vc fala através de um eu lírico, a segurança com que vc norteia as palavras, reflexões, metáforas e pensamentos mostra que vc colocou-se no possível lugar de alguém que simplesmente desistiu, ou está prestes a fazê-lo.
Gosto de contos assim, dramáticos, fortes, profundos como raízes que não têm medo de encarar a sombra.
Bom Natal e um grande 2020, minha querida!
Curiosa pra saber quem é vc. Bjos!
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Querida contista,
Não sei se estou certa, mas tenho a impressão de reconhecer vcs uma em cada conto. Claro, não vou revelar meus palpites de autoria, mas acho que estamos avançando em nossa convivência e começamos a decifrar umas as outras, como se um raio x espiritual nos fizesse enxergar sentimentos reais entre as linhas.
Nada de natal aqui. A protagonista se sente ofendida pela esperança que perdeu, pela beleza que não mais vê, pela consciência de que a felicidade é alto tão artificial quanto os pinheiros de plástico que viram árvores de consolo.
Um conto intimista, um jogar de palavras como setas no previsível. Um conto fora da curva. Gostei.
Feliz natal e muito sucesso.
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Uhh.. cheguei a arrepiar!!
Adoro historia de fantasmas e adoro historias de Natal
Um conto prosa poética, lindo de se ler.
Feliz Natal!, Contista!
❤
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Querida Contista,
Tudo bem?
“Não, eu não acredito em Papai Noel. Nem em fantasmas. Eles não existem. Nunca existiram. Repito a negativa enquanto me deixo atravessar pela parede”. Que final primoroso… Você constrói o texto inteirinho, revelando a natureza de seu narrador apenas na última frase. Se é de fato um fantasma ou se a frase se trata de uma metáfora, não importa, ambas as opções são lindas.
Um conto maduro que mostra uma autora segura do que faz, consciente de suas escolhas, sem medo de ousar na dramaticidade.
Lendo os contos postados até aqui, estranhamente, parece que cada um fala de um pedacinho de mim, talvez de todas nós. Isso é lindo, parece que estamos todas sintonizadas.
Parabéns pelo trabalho profundo.
Desejo um Natal de muito amor e um Ano Novo de luz para você e os seus.
Beijos
Paula Giannini
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Olá, querida amiga Contista!
Seu conto é cheio de sentimento, nostalgia, um balanço do que já foi e nunca voltará a ser e a frase final foi matadora heim, uma fantasma relembrando os natais passados… Muito lindo, de um jeito triste e melancólico, mas mesmo assim lindo! Parabéns e boa sorte! Feliz natal! Bjooo
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“As luzes, com seu pisca-pisca irritante, que na infância pareciam estrelas cadentes, agora se revelam meros vagalumes decadentes.”
Eu tenho medo de que o Natal seja apenas isso para mim, daqui a algum tempo. Tenho medo de não ver mais magia, de deixar de me encantar, de a emoção dar lugar à melancolia. Tenho medo.
O teu conto fala do meu medo.
Ele é poético e denso. Revela o que muita gente sente nessa época: um simples vazio.
Rogo para que possamos nos encantar e viver um Natal iluminado e mágico, todos os anos. Que esse seja mais um.
Um 2020 maravilhoso pra ti!
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Uma existência fantasmática, a vagar por reminiscências, é disso que sua protagonista me fala. Vejo uma não-dor, espécie de indiferença, compreensão de que passado, presente e futuro de nada valem. Melancolia, seria o sentimento mais próximo. A expressão proposta foi muito bem utilizada engendrando um metáfora potente e enigmática. Parabéns pelo texto sensível, impecável no uso das palavras, capaz de representar sentimentos, embora humanos, tão complexos. Feliz Natal e um Ano Novo inspirado para você e as pessoas que ama, querida Contista. Beijos carinhosos.
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O conto tem um tom melancólico, uma carga poética que esbarra na dramaticidade. No entanto, não vejo a narradora como alguém que não gosta do Natal. Ela (acho que é ela) apenas sente falta do que já se foi e não pode voltar a ser, por isso tem tantas lembranças e saudades. Já estava preocupada com a moça/senhora, quando tive a surpresa do final: é um fantasma que visita a casa da avó em busca dos sonhos natalinos que já viveu. Gostei muito desse final e de como utilizou a expressão pedida.
Espero que a autora tenha um Natal cheio de amor e presença real dos seus queridos. Que a melancolia seja só um fantasma que a visite para inspirá-la a escrever contos como este.
Feliz Natal!
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Olá! Para falar a verdade, Natal pra mim é um pouco assim, um misto de sensações, mas o que mais impera é a nostalgia… Tenho um ideal de Natal, que é o do tipo que eu passei até os 10 anos, digamos. Depois disso, as coisas não foram mais as mesmas e mesmo agora, que tenho filhas, deixo bem claro que Natal não é nada disso que é comum a gente ver na tevê. Não, o Natal é mais humano, rs… Nós, humanos, fomos de certa forma transformando o Natal, mudando a forma de comemorá-lo, e eu penso que apesar de tudo isso nos faz bem, quem entende o que é o Natal realmente percebe a mudança e é capaz de fazer algo de bom…
Eu prefiro imaginar que a narradora é uma fantasma, mas a expressão metafórica da coisa cabe bem demais também, e isso só mostra a segurança da sua narração. Ótimo trabalho, Contista, te desejo um Natal cheio de paz e de alegria no coração (acho que essas duas coisas não podem faltar), e que seu 2020 seja de muita paz, saúde, além de muita inspiração! ❤
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Olá, Contista.
Um conto denso, nostálgico e muito familiar. Acho que todos nós temos essa sensação, o natal é como se fosse um lembrete de como as cosias eram melhores, ou mais precisamente, como a gente acaba que era. Acho que tudo é mais como uma ilusão. A revelação sobre o personagem surpreende e transforma ainda mais a história aqui contada. As emoções se intensificam. Muito bom mesmo. Parabéns, feliz natal!
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Oxi, prosa poética muito boa, e que final, hein?
Boa noite, Contista!
Gostei do seu texto saudosista. Se imaginar que a voz é na verdade um fantasma, então a sensação de lamentação e saudades ficam mais densas.
Gostei das reflexões, dos questionamentos que só fazem reforçar a sensação de desalento. Gostei da fluência verbal também (adoro quando as palavras não se repetem demais).
Parabéns pelo conto. Boa sorte e Feliz Natal!
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Olá, Cláudia. Desejo que o seu natal tenha sido bem diferente deste aqui narrado. Até porque você não é um fantasma, ou sê-lo-emos todos? é uma possibilidade viável, mas não cabe aqui.
Tanta saudade e tristeza até doem. Mas de alguma forma, esse tempo de encantamento que o natal é na nossa infância, sempre nos transforma em adultos nostálgicos nesta época.
Tanto que se vai, que não voltará nunca!
Onde essa alegria e a criança que um dia fomos sem saber que estávamos a ser tão felizes?
Onde aqueles que tanto nos amaram e atravessaram paredes que, felizmente, ainda nos estão vedadas?
Onde tanto de nós que desejaríamos continuar a abraçar por toda a vida?
Valham-nos as crianças!
Obrigada por este conto lindo.
Que o seu novo ano seja maravilhoso. Beijos.
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Melancólico. Tão triste… Penso agora que é essa a sensação nessa época. Talvez porque quando somos criança o Natal parece diferente, cheio de magia. Sei lá. Não sei bem se é magia, ou se são os olhos infantis cheios de expectativas. Os olhos adultos só veem espectros.
Bom texto e boa reflexão. Abraços carinhosos.
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