A PÓS ─ Claudia Roberta Angst

Às vezes, tudo o que você quer é um abraço. Um aconchego morno, um acalmar de sentidos, um toque pacificador. Não mais, não menos. Apenas isso: terminar nos braços da morte. Sim, estou falando dela, da famigerada e derradeira passagem nesta vida. Da indesejada das gentes, como diria o poeta.

Conheci Marina Morena ainda na adolescência. Rindo do quê? O nome dela é esse mesmo, o que posso fazer? Não inventei, ela já veio com ele como acessório. Lembra algo? Claro, eu também quando a vejo tenho vontade de sair cantando Marina Morena você se pintou. Voltemos ao samba do tempo e ao rebolado de minha vida. Que sempre foi dona do mais perfeito gingado nas redondezas. Tem as curvas perfeitas para o encaixe das minhas mãos.

─ Sempre fui louca por você. ─ Foi o que ela teclou no nosso primeiro encontro virtual.

A bela Marina sorria para a tela, ao me dizer essas palavras mentirosas. Como se eu, macaco velho, fosse acreditar no que ouvia daqueles lábios. Pois é, acreditei. Mesmo sendo um sujeito instruído, no auge da minha capacidade cognitiva, declarei-me um completo imbecil diante daquela beldade. O intervalo de dezessete anos de afastamento entre nós em nada ajudou a desfazer o engano. Tendo Marina vivido mais de uma década no exterior ─ em algum desses países nórdicos que ostentam inacreditável qualidade de vida ─ com certeza, devia ter lidado com relacionamentos dos mais variados tons e semitons. Fiquei curioso para descobrir o que sempre representava para ela.

Depois de colocarmos o assunto “juventude perdida” em dia, resolvemos nos encontrar pessoalmente para descobrir se ainda éramos os mesmos dos tempos de escola. Chamei-a para uma roda do samba que nascia e crescia no boteco da esquina, todas as quintas-feiras. Acontecia ali, a duas quadras da faculdade onde eu estudava. Passava sempre por lá depois das reuniões com o meu orientador. Estava terminando mais uma pós-graduação, investindo meu pouco tempo em uma tese que talvez defendesse em doutorado. Ainda me recuperando de um desastroso divórcio, tentava mergulhar em qualquer coisa que me desviasse do sentimento de perda e fracasso.

A escolha do tema da minha monografia foi bastante discutida entre mim e o meu orientador, Professor Olímpio Guedes Filho. Se o filho já era arcaico, o que teria sido o pai daquele senhor pernóstico?  

Depois de muitas dúvidas e algumas discussões ferrenhas, decidi-me pelo título A Morte e o Eufemismo na Linguagem. Há alguns anos, vinha protelando desengavetar este projeto. Considerei o momento de ruptura e desengano o mais adequado para lidar com o material. Os símbolos sempre me fascinaram, com suas inúmeras ambiguidades e segredos. Revisem os fatos, eu era mesmo um homem condenado às minhas conotações e metáforas.

─ Não prefere defender algo mais inscrito na atualidade? ─ O professor insistia em me convencer a abandonar o assunto que ele considerava mórbido e impróprio. Talvez pela aproximação da data limite de sua validade neste planeta.

─ Existe algo mais atual do que a morte, Professor?

A jornada dupla, trabalho e estudo, vida e morte, me deixava exausto. Eu já morria, agora sei. Aliás, há meses caminhava pelos corredores da faculdade em estado de putrefação. Pelo menos, os olhares dos colegas disparavam alertas para minha autoestima cambaleante.

No meio daquilo tudo, como poderia contar com o reencontro com Marina? Parecia ser mais uma pegadinha da minha vaidade esfacelada. Aquele mulherão lapidado pelos deuses declarando-se apaixonada depois de tantos anos. Claro, eu devia ter percebido que havia algo errado. Mas havia mesmo? Ainda não sei. Talvez vocês possam me esclarecer quanto a isso.

Tudo bem, não me olhem assim. Eu sei o que vocês querem. A morte. A minha morte. O fim do meu caminhar neste lugar que todos chamam de mundo. Pois bem, eu morri. Mais cedo do que previra meu cardiologista já não muito otimista. Morri na última sexta-feira, na santa da paixão. Nos braços de uma paixão que nada tinha de santa.

Dizem que enfartei. Foi fulminante, morte abençoada, segundo meus amigos de letras. Aconteceu após o nosso terceiro reencontro. Sim, eu estava contando os nossos reencontros, como quem tem medo de que tudo se desfaça no despertar do dia seguinte. Marina não negava fogo, nem mesmo uma fagulha. Parecia mesmo convencida de que eu era o amor da sua vida e que a nossa reaproximação havia sido coisa do destino. Uma benção!

Então, já acostumado a acreditar em tudo o que ela me dizia, segui o instinto entre as pernas, deixando o da sobrevivência à míngua. E estava muito satisfeito com o resultado dessa minha decisão. Até aquele dia. O fatídico e memorável dia.

Aconteceu de repente, sem qualquer aviso. Minha cabeça pendeu sobre os seios de Marina, segundos depois do êxtase. Minha consciência logo se desgrudou daquele corpo que decaía ano após ano. Admirei minha brancura cobrindo aquele fenômeno achocolatado. O contraste era de uma beleza sem explicação.

Levei alguns segundos, se é que poderia precisar o correr da minha pós-vida em tempo real, para perceber o desespero de Marina. Aos gritos, ela sacudiu-me como pôde, desfazendo-se em pânico sob o meu peso largado. Transformei-me no que minha ex-mulher tanto dizia ter sido a vida inteira: um peso morto. Chumbo sem alma, adormecido sobre aquela pele agraciada pela natureza.

Por fim, Nina, como eu a chamava nos momentos mais íntimos, conseguiu virar meu corpo para o lado esquerdo e sair da cama. Chorava quase convulsivamente; não sei se por caridade, pavor ou raiva. O que ela faria agora? Ouvi uma ladainha de resmungos entrecortados por choro e soluços. Pegou o celular no criado-mudo e, por meio de mensagens digitadas quase ad eternum, tratou logo de se livrar do presunto. Cadáver, defunto, peso morto, enfim meu corpo desperdiçado em uma cama ainda quente. A morte abraçou-me por trás e ferrou mesmo comigo.

─ Nina, querida, olhe, estou aqui! Não precisa ficar assim. Estou bem. ─ Tentei abordá-la tal e qual aquele galã do filme Ghost.

Tudo em vão. Ela não me ouvia e eu tampouco me conformava em estar morto de verdade. Talvez tudo fosse uma espécie de experiência fora do corpo, um trotar d’alma por sonhos. Até que me dei conta de que aquele corpo não voltaria a ser meu. O espaço disponível era uma imensidão angustiante no além. Estou assustando vocês, amigos?

Voltemos ao meu desencarne, após o momento de abotoar o paletó de madeira e minha ida ao beleléu para comer capim pela raiz. Usem os eufemismos que preferirem, acendam velas e cantem hinos. Será uma bela homenagem, mesmo que o sol volte a brilhar sem a minha presença. Acho injusto, mas assim segue a vida.

Em poucos minutos, ou o tempo que percebi como aglomerados de segundos, Marina tomou um banho, vestiu-se, perfumou-se e já não chorava. Contrariando as minhas românticas expectativas, notei um pequeno sorriso surgindo entre aquelas covinhas tão conhecidas pelos meus lábios. Cobriu meu cadáver com o lençol florido e passou a evitar olhar para o passado. Eu era agora o seu passado e não havia mais nada que ela pudesse fazer por mim.

A campainha tocou desfazendo o momento de iniciado velório. Quem ousaria importunar justamente naquela hora tão velada? Marina abriu a porta sem parecer surpresa. Esperava por aquilo, por alguém que lhe garantira presença e apoio.

─ Nossa! Como você demorou!

Troca de beijos, apenas sombras para mim. Sons de um farfalhar de abraços e acomodação de peles. Não pude acreditar no que os meus olhos que, ainda não haviam sido comidos, viam. O homem ali parado, em silenciosa reverência, pausava palavras desconexas e acariciava a minha bela morena de modo tão íntimo quanto insistente.

Professor Olímpio franzia a testa enquanto acertava a remoção do corpo pelo celular. Orientação, dissimulação, melhor nem pensar nos símbolos que o professor gravara ali naquele mesmo quarto. Havia um certo respeito no tom de sua voz, como se de fato, sentisse pela minha morte um desagravo interior.

Notei quando meu prestigiado orientador tirou da sua pasta um calhamaço de papéis. Riscos vermelhos atravessavam o branco das folhas. Minha tese, recém-corrigida, supus. Agora, Professor? Esperava pelo seu aval há mais de uma semana e o senhor sempre a adiar nosso encontro. Desculpe, mas a morte não quis esperar. Eis me aqui, amortecido pela morbidez do momento.

Olímpio mostrou aquelas páginas um tanto amassadas à Marina. Pôs-se a ler de forma pausada os parágrafos como se fizesse uma homenagem póstuma ao seu aluno preferido. As palavras surgiam como um poema: morte, perecimento, passamento, decesso, definhamento, falecimento, óbito. Uma cascata de significantes desconexos e sem importância naquele momento sem denotação.

─ Falei com o irmão dele. Irá providenciar os trâmites legais e resolver tudo.

Marina olhou-o de forma agradecida como se fosse se ajoelhar aos seus pés. E foi exatamente isso que ela fez. As mãos afoitas a abrir cinto, desabotoar calça e chegar aos brios do homem. Sua oração pela minha alma redundou-se em uma chupada colossal. O que queria aquela mulher? Matar-me de vez? Mas eu já estava morto, recordei-lhe ao ouvido.

─ Sou louca por você. Sempre fui louca por você, Professor. ─ Disse ao tomar fôlego entre engasgos e volúpia.

Se eu ainda tivesse algum movimento, teria virado o rosto para não ver mais aquela cena de filme pornô barato. Apostaria meus últimos minutos sobre o corpo de Marina que os fluídos do Professor Olímpio cheiravam a mofo e urina. Velho decrépito, pedófilo enrustido, babão.

O professor ainda estava com a minha monografia nas mãos, mas aos poucos, o estremecimento causado pelas carícias orais de Marina, derreteu seus reflexos e os papéis tombaram sobre a cama, o chão, as costas da deusa. Vi minhas palavras, aquelas que jamais defenderia, voarem pelo quarto. Como um poema de Poe, as folhas revelavam-se corvos, enegrecidos pelo meu sangue já coagulado.

A morte, meus caros, não é de toda má. Olhando tudo daqui, percebo que se não exigirmos demais, ela ajeita o the end em travesseiros recheados com plumas de delicadeza. A Dona Óbito é gentil e seu abraço não tritura ossos nem mesmo orgulho. Pelo contrário, sua presença é quase um valsar de sentidos. Eu diria mais se pudesse: o verdadeiro orgasmo é a morte. A morte é o prazer da última entrega.

Falei demais para um morto, não? Agora me deixem descansar em paz. Vão lá postar RIP nos comentários da minha página do facebook, decretem luto por alguns dias nas redes sociais. Divulguem minha tese como puderem, via instagram, tweeter, o que for mais eficaz. Sim, quero a fama depois que me deitei na cama e morri.

Essa conversa toda de morte me deu sono. Quero somente me virar de lado e adormecer após meu último êxtase. Se roncar, perdoem-me, mas será o eco da culpa dos que ficam.

Despeço-me, amigos, sem lágrimas. Essas coisas de dor e arrependimento, deixei lá nos bolsos do meu corpo nu. Sinto-me bem confortável nessa ausência do físico.  Hoje, dormirei de conchinha como nunca consegui em vida. Os braços da morte me acolhem mansamente.

 O antes pode ter sido um fiasco, mas agora, sinto que cheguei ao ápice da minha existência.

Após sempre será a melhor lembrança que terão de mim.

14 comentários em “A PÓS ─ Claudia Roberta Angst

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  1. Muitíssimo bem escrito o seu conto, Claudinha. A história é irresistível, as metáforas são originais e são excelentes, poucos e muito bem delineados os personagens. Seu texto é um mergulho no prazer da leitura, tem uma fluidez absurda, é realmente uma delícia de ler. Adorei o uso de a pós e após. Seu protagonista é delicioso, e suas falas ou pensamentos são um convite a continuar lendo. Nota 10 para cada centímetro deste excepcional texto. Um grande abraço.

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  2. Uma proposta bastante arriscada. Não é fácil criar um protagonista-narrador, morto, APÓS Brás Cubas. E você se saiu com mestria: texto repleto de emoção, uma trama fabulosa e uma antítese no desfecho, afora os inteligentes jogos de palavras.

    Parabéns! Sua palavra é o elemento seco e concreto da construção dos muros que nos cercam, aflitos, diante da violência, solidão e, às vezes, ternura. A vida é cheia de minutos… e a morte também. Grata pela leitura reflexiva e profunda. Beijos.

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  3. Muito boa narrativa, Claudia. E ela começa no título, quando nos perguntamos “Por que ‘A Pós’? O que há de tão importante para que seja usada como um título?”. É mais que um convite à leitura, é uma intimação, rs. A sequência dos fatos foi estruturada de forma ágil, o ritmo de leitura foi bom, nada cansativo. Essa Marina e esse orientador, hein? De dar muita raiva, rs. Parabéns!!!

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  4. Eu ri! Gargalhei! Lia e imaginava a cena, especialmente do momento fatal. Você foi maravilhosa nessa sua narrativa e o professor arcaico está na minha mente – sujeito conhecido, não consegui não associar de forma direta e contundente. Enfim, um conto de um humor sutil, mórbido, mas humor refinado.
    Parabéns pelo texto.
    Um grande e carinhoso abraço.

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  5. Uia, Um Brás Cubas sabrinesco mórbido e hot! rsrs
    péssima classificação eu fiz, do que não pode ser classificado, um conto bem criativo, inteligente e que abordou essas coisas de q falei, abordou o clássico, a sacanagem em dois níveis, a depressão, as ilusões amorosas.
    Muito bom de ler, Claudia
    Parabéns

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  6. Espetacular, Claudia. Deliciei-me aqui com cada palavrinha do seu conto. A narrativa tem uma fluidez magnífica, seu personagem absurdamente cativante e a trama ficou redondíssima e muito engraçada. Agradecida aqui por essa leitura tão prazerosa. Um beijo.

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  7. Querida Cláudia,

    Tudo bem?

    Cheio de sentenças dignas de nota, este seu conto é uma delícia pelo narrador. Além da homenagem machadiana, a ironia do narrador é incrível. Muito bom mesmo. Adoro contos assim, além da história, uma forma cheia de literaridade.

    Parabéns!

    Beijos
    Paula Giannini

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  8. Oi, Claudia!

    Muito boa narrativa de um homem não só finalmente – e completamente rs – moto, mas que parecia estar há um tempo aguardando por aquela que inexoravelmente, vem.
    O humor está justamente aí, nesse caminhar rumo ao inevitável que parece assustador, para um pós relax e quase animado.
    O recém-defunto reflete sobre a vida, sobre o que vem no pós, e parece, e é, para ele, até bom!
    Marina Morena (tenho certeza) levará Olímpio para o mesmo destino rs.
    Muito bom!!
    Beijos!

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  9. Olá, Cláudia!
    Que conto interessante! Ele aborda Poe no seu aspecto mórbido, Cinquenta tons de cinza por ser sua qualidade erótica e Memórias Póstumas de Brás Cubas por ser um narrador morto. Como pode isso?
    A leitura flui muito bem, o leitor mergulha de imediato pela situação inusitada e as agruras a que o coitado sofre no meio de uma pós. Há leveza, ironia e sacadas maravilhosas como:
    “O verdadeiro orgasmo é a morte. A morte é o prazer da última entrega.”

    |Parabéns, pelo texto perspicaz e pela criação de um narrador adorável!

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  10. Deixei o Senhor Destino Cibernético escolher aleatoriamente um conto aqui do blog para mim, e eis que lá vem este seu, Claudia! Estou nas nuvens, meio mortinha depois do gozo, como o seu personagem! 🙂 Que delícia de conto! Cheio de passagens geniais, jogo de palavras, sacadas de mestre! Amei!

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  11. Adorei este protagonista, bom humorado e não se faz de vítima, abraça a morte como uma velha amiga. Frases fortes e que geram questionamentos sobre a vida que levamos . Adorei! Bjs ❤

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