Time Loop – Evelyn Postali

Eu caminho apressado, frenético. Não percebo a largura de minhas passadas, e sim o formato dos seixos a correr debaixo de meus pés. Pedras irregulares a mostrar o desalinho da minha vida, ou daquela que eu tinha. Molhadas da chuva, elas têm um brilho diferente. Anos de fúria e rancor aliviados por Emma com as palavras precisas, com toques gentis e momentos de afeto dividindo a mesma cama.

Meus olhos estão cansados daquela paisagem, mas preciso chegar com urgência, porque a hora do encontro já se passou em cinco minutos e ela pode não esperar.

Atravesso a rua em direção da última quadra antes do parque, respirando o mesmo ar de sempre.

O vento armara-se ainda pela manhã para acompanhar a água despejada na terra e ainda desce das tampas do céu. Agora, ele dança na rua, erguendo as folhas e varrendo os restos do dia. Eu sinto o calor de seu sopro e arrepio novamente. Ventos quentes de outono nunca são bons presságios.

Afasto o sentimento mórbido para o mais longe de mim. Não é hora para mergulhar em superstições, em maus agouros, frutos de um amontoado de histórias acumuladas durante anos. Eu sou um homem comum, de vida comum, de ações comuns. Tento não me permitir ficar alvoroçado com as sensações funestas do acordar, mas o último enleio retorna.

No sonho que tive, havia um céu dourado silencioso.  A cor reluzia num dégradé de baixo para cima na extensão do horizonte, tocando as montanhas ao fundo como um alpinista vencedor. A linha branca da chuva cobria a cor e a desmanchava. O assoviar do vento trançou caminho pelos vidoeiros. Eles se contorceram como se sentissem a dor carregada pela música daquele violoncelo angelical.  Longas avenidas de canto transparente atrás de mim serpenteavam com ele. A melodia tocava as folhas e as palmas inclinavam-se suavemente e resignadas no canteiro.

O crepúsculo não aconteceu em meu devaneio, mas sonhos não são senão sonhos. Frutos de um acúmulo de vivências e pensamentos a se misturarem todos de uma só vez em minha cabeça. É desta forma que espanto as imagens que me assombram.

A chuva visível ao longe, acenando tristeza e melancolia, me faz parar por instantes e perceber a tonalidade acinzentada e rósea dos prédios a me ladearem. De canto de olho espelham minha urgência. São janelas e portas. Já não me chamam. Seus habitantes nada sabem de mim.

Eu quero encontrar Emma. Ela está lá, bem sei, como sempre esteve. Espera por mim com seu vestido cinturado lilás. Foi como eu a vi pela manhã, quando combinamos nosso encontro.

Com ela, descansa nosso amor silencioso e proibido. Nossos compromissos íntimos são picos monumentais. Têm início em voos suaves para terminarem em quedas dramáticas. Nossas bocas se juntam na escuridão. Nossos corpos suspeitos fogem do mundo e dos conhecidos. Somos culpados porque o veneno de nossas almas é a falta de coragem para dizer de nosso amor.  Covardes, ainda encontramos um no outro, desculpas para não nos mostrarmos à sociedade incriminadora.

Estou atrasado.

A saudade não é dor física. É urgência de alma.

Não há senão a pressa no meu caminhar. Corro contra o tempo porque o carrilhão já badalou seis vezes.

É preciso seguir para encontrá-la.

A tarde está morrendo.

Meus cabelos desalinhados pedem as mãos jeitosas de minha amada. Tento conter o ímpeto de correr.

Cruzo o parque na mesma trilha. O arvoredo vestido de dourado e marrom lembra-me sepulturas. E não consigo cruzar o caminho até o fim. Algo me faz parar desconfiado. O mesmo presságio, o mesmo aperto no estômago, o mesmo suspiro anêmico. Os ventos quentes da estação.

Alguém sai das sombras das árvores e afronta-me. A um passo de mim. Seu olhar me enfrenta e eu estanco. Sei que a hora é aquela. Dèjá vu. A arma dispara. O som ecoou pelas bétulas. A voz de minha amada grita meu nome ao longe. Depois, só o silêncio.

Um cheiro de pólvora queimada impregna minhas narinas. O chão é duro e de um vermelho vivo e quente. Estou preso a ele.

Estou preso ao som que levou a mim e levou Emma.

E quando abro outra vez meus olhos, cá estou eu, olhando através da janela da minha casa. O crepúsculo também não acontece agora. Daqui a pouco é preciso sair novamente. Emma me chama. Temos um encontro marcado, do outro lado do parque, onde o arvoredo está pintado com as cores outonais.

Meus olhos cansados da noite e do dia não conseguem ir além da janela. A água a molhar o vidro é de uma chuva intensa brotada do cinza acumulado no céu daquela tarde. A borboleta ainda se debate tentando resgatar a liberdade que jamais foi sua.

Emma me espera.

**** ****

Nota: Laço temporal é uma espécie de prisão, onde um ou mais personagens se encontram, e onde um determinado período de tempo se repete várias vezes. A repetição pode durar horas, ou dias, ou a eternidade. Em narrativas de ficção científica, onde ele é mais comum, o loop temporal é percebido como um déjà vu.

20 comentários em “Time Loop – Evelyn Postali

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  1. Eu já havia lido este conto sensacional. Super bem escrito, inesperado, impactante. Amei do começo ao recomeço. Vc é uma escritora muito preparada, profissional, e precisa. Vc é aquilo que um dia eu gostaria de ser. Fora que também é uma pessoa maravilhosa. Ah, que bom ser sua amiga. Parabéns por mais esta joia que tive o prazer de reler.

    Beijos e queimando a mufa aqui para escrever alguma coisa. Beijos.

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    1. Já faz um bocado de tempo. Ele foi revisado e está mais enxuto também. Eu agradeço os elogios. Estou sempre tentando aprender ao máximo novas formas narrativas. E eu digo o mesmo, além de escritora fantástica, você é uma pessoa incrível. Obrigada pela amizade, pelo carinho e cuidado.
      Beijos e abraços carinhosos.

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  2. Adorei. Ótimo tanto no enredo, na ideia brilhante, quanto na narrativa. Muito interessante o que escreveu após o final do conto, para ficar pensando.
    No sonho que tive, havia um céu dourado silencioso. A cor reluzia num dégradé de baixo para cima na extensão do horizonte, tocando as montanhas ao fundo como um alpinista vencedor. A linha branca da chuva cobria a cor e a desmanchava” – a descrição neste trecho é sensacional. Parabéns.

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  3. Muito bom! Eu não conhecia este texto, eu acho.
    Frases poeticas maravilhosas, destaco tb a mesma q a Fernanda destacou.
    Tudo muito perfeito.
    Parabens

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  4. Amantes que são mortos enquanto se encontravam e ficam presos em um loop infinito. Isso deve ser bem pior que o inferno, reviver a mesma coisa todos os dias, nossa, que cansaço só de imaginar! Ótimo texto, apesar do título, fui pega de surpresa, tenho que passar a prestar mais atenção aos títulos, rsrsrs. Adorei! Bjs ❤

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  5. Uma história de amor, de desencontro repetido, a ansiedade estendida sem trégua. As descrições são lindas, poesia pura. Ainda estou encantada com o arvoredo vestido de dourado. Que tortura passa esse homem, em busca da sua amada para se perder novamente. Ele é a própria borboleta se debatendo contra o vidro da janela, querendo a liberdade que nunca foi sua. Excelente conto, ainda bem que o resgatou do seu baú de preciosidades. Beijos.

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  6. Olá, Evelyn! Seu protagonista mergulha nos próprios pensamentos, com a sensação de “replay”, e a certeza de já ter passado por aquilo; apenas algo muito tênue, carregado de ternura e melancolia. Encantou-me a sensibilidade elegíaca, triste e chocante que modelou sua ficção.

    São retratadas, aqui, as lembranças de vidas passadas, momentos de reflexões e meditação em que, pareceu-me, o personagem pede para que tenha maior sabedoria e entenda as mensagens trazidas.

    O texto é permeado de belas imagens, visual, habilmente construído. O leitor pode acompanhar a construção do time loop e suas várias camadas. Há muita fluidez, apesar da complexidade do que é dito. Tudo é sentido, uma rara sinestesia desse amor quebrado, absolutamente verossímil. Pérolas em cada linha.

    Parabéns pela criação! Beijos ternos.

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  7. Olá, Evelyn!
    Que preciosidade esse conto seu! Visualmente, ele é tão bem descrito, quase como pinceladas onde as cores outonais se confrontam com o cinza. O sol com a chuva. A liberdade e a prisão. Além da linguagem refinada e dos vocábulos de múltiplos sentidos sensoriais, há a sutileza do relato, do amor que se espera completo contra a incompletude dos corpos, que nunca se encontram, que nunca se comprazem no laço, a não ser no dejá vú. Parabéns por esse conto magnífico.

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  8. Querida Evelyn,

    Tudo bem?

    Adoro o tema looping temporal. Mas, este aqui superou-se ao sair do lugar comum. Um conto, quase uma poesia, que passei no íntimo do personagem, aproximando-o de seu leitor.
    Uma obra prima.

    Beijos
    Paula Giannini

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