Mónica (Ana Maria Monteiro)

 

Vi-a pela primeira vez no centro comercial Apolo 70 em Setembro de 1992, na loja de animais que existia na cave. Olhou para mim com aquele olhar infinito de cão bebé e as nossas vidas tomaram um novo rumo a partir desse instante. Era arraçada de podengo (mãe pura e devassa e pai incógnito e aproveitador) e linda.

Eu não sei se o cão é o melhor amigo de homem. É uma frase feita que contém em si o vazio habitual de todas as frases feitas, que perdem o conteúdo graças à sua repetição banal e sem sentido.

A minha cadela morreu. Tinha dezassete anos. Era uma cadela centenária. Em bebé era linda e quando perdeu a frescura dos primeiros anos, manteve-se sempre bonita.

Goste-se ou não da ideia, os cães são como nós – irrepetíveis, inimitáveis; por muito parecido que um cão seja com outro, a sua maneira de ser nunca é igual, tem sempre características que o tornam único. A minha cadela era única.

Foram milhares as peripécias que ao longo dos anos vivemos em conjunto e a que ela reagiu de acordo com a sua especificidade. Também me deu grandes dores de cabeça, especialmente em bebé. E nas férias. Algumas, tivemos que alterar para poder levá-la. Fins-de-semana de que abrimos mão, então, não têm conta. Mas nas férias, lá arranjávamos maneira de a encaixar, com dificuldade, claro.

Desta forma, tornou-se uma cadela bastante viajada. Correu o país de lés a lés, mas o que ela mais adorava era o Algarve – por causa da praia. Enquanto não proibiram os cães nas praias, ela foi a rainha do verão na Meia Praia. Toda a gente a conhecia. Assim que chegava, saía disparada do carro e ia direitinha ao sítio onde sempre ficávamos. Quando finalmente chegávamos, já ela estava rodeada da sua legião de admiradores. Só se ouvia o nome dela em toda aquela extensão de areia. Era muito mais conhecida que nós. As pessoas falavam connosco, mas sobre ela. Só dela é que sabiam o nome e só o dela é que estavam interessadas em saber. Ela desdobrava-se; brincava com os miúdos, corria feita louca pela liberdade da praia, ia à água, metia-se em todos os jogos de bola e, se não a incluíam no jogo, roubava a bola e era uma canseira para conseguir apanhá-la. Devo ter pedido desculpa milhares de vezes mas, francamente, nunca vi ninguém zangado. Além disso, ela jogava mesmo bem, era uma espécie de Ronaldo do mundo dos cães. Se futebol de cães desse dinheiro, eu teria ficado rica, assim só enriqueci por dentro – mas, dessa forma, ela enriqueceu-me muito.

Quando íamos de férias, assim que atravessávamos a ponte e não virávamos à direita para a margem Sul, ela dava logo sinais de intensa excitação – sabia que ia para Lagos. Depois acalmava a sentava-se quietinha no banco de trás até Odiáxere. Em Odiáxere dava-lhe o cheiro a maresia e “passava-se”, já não saía mais da janela até chegar ao destino, orelhas ao vento, o coração em festa.

Com alguma dificuldade conseguimos alojá-la em bastantes hotéis. Ela adorava hotéis, os nossos, não os de cães, que a esses detestava (não por culpa dos que conheceu, mas porque sofria com a separação).

Uma vez, ainda cachorra, pouco depois da inauguração do Hotel de Guimarães, viemos ao Norte e foi lá que ficámos instalados. Por favor e, penso eu, porque ainda estavam no início, deixaram-na hospedar-se connosco desde que não frequentasse as áreas públicas.

Creio que devemos ter estreado aquele quarto moderno e novinho em folha. Que estreia!
Não sei se foi da viajem longa ou outra coisa qualquer, mas durante a noite sujou o quarto todo. Qual pequeno-almoço, qual o quê! A manhã revelou-se curta para tanta roupa que tivemos que lavar. Foi preciso vir à rua comprar detergente (e era sábado), lavar lençóis, colchas das camas, toalhas que serviram à limpeza, alcatifas… enfim, tudo. Creio que fizemos um bom trabalho, mas até hoje não tenho a certeza de que tenhamos conseguido alcançar a perfeição.

Era gulosa até mais não e adorava álcool, teria sido alcoólica se lhe temos dado oportunidade para isso. Assim teve que contentar-se com o cheiro na sua forma etílica e com o banquete que lhe foi proporcionado pela queda de uma garrafa de vinho branco na alcatifa. Memorável, a sofreguidão com que chupou o mais depressa que conseguiu enquanto a tentávamos limpar rapidamente.

Tantas histórias, tantas! Uma vida. A dela e boa parte da minha.

Chamava-se Mónica. Durante dezassete anos, viveu comigo cada dia. Esteve presente em todos os momentos importantes. Foi ao meu casamento, estava em casa quando voltei da maternidade com o novo elemento da família. Viveu comigo em Queluz, depois em Lisboa e veio também quando nos mudámos para Braga. Esteve comigo nos momentos de tristeza e igualmente nos de alegria. Um glaucoma cegou-a nos últimos anos de vida. Quando a velhice já mal lhe permitia manter-se nas patas, continuou a abanar o seu rabito todas as vezes que cheguei a casa. Morreu. Nunca a esquecerei. De alguma forma, uma parte de mim, tornou-se definitiva, um bocadinho de mim foi com ela.

Muitas pessoas dizem que não querem ter cães para evitar o sofrimento quando morrem, não concordo. Por essa ordem de ideias todas as formas de amor deveriam ser evitadas com vista à preservação. A Mónica deu-me muita felicidade, muita alegria, muitas arrelias, muita canseira; a Mónica deu-me tudo o que faz parte de qualquer experiência de amor e eu agradeço à vida todos esses momentos.

Teve uma morte calma e tranquila, limitou-se a apagar-se, acredito que chegou ao limite do seu tempo possível de vida. Morreu como viveu: em paz e junto de nós.

A Mónica morreu. O coração aperta-se-me no peito cada vez que penso nisso. A alma chora-me. Perdi poucos seres amados na vida e doeram mais que ela. Impomos a nós próprios uma disciplina de controlo emocional que não nos permite sofrer tanto por um cão quanto por uma pessoa.

Não sei se o cão é o melhor amigo do homem, mas agora sei, sem margem para dúvidas, que quando eu própria atravessar a última fronteira terei quem esteja à minha espera e, enquanto tal não suceder, se a eles houver lugar, passei a ter um anjo da guarda.

Querida Mónica!

13 comentários em “Mónica (Ana Maria Monteiro)

Adicione o seu

  1. Olá, Ana!

    Que aflição ler o seu texto. Aflição porque já sabíamos do tema (morte) e, portanto, fiquei desesperada a cada linha imaginando a descrição do fim de vida da cadelinha.
    Gostei bastante. Tem um frescor no desenvolvimento, quando você está falando sobre as peripécias da Mônica na praia. E Quando chegou ao fim, puxa vida! Suspirei.

    Parabéns pelo relato e por compartilhá-lo conosco.

    Grande Mônica!

    Curtido por 1 pessoa

  2. Tenho cães em alta conta. Tenho um profundo respeito e admiração por quem cuida e ama animais, em especial, cães. Porque esse carinho que eles nos dão, esse amor, é uma das melhores coisas que existem no mundo. Aquecem nosso coração. Nos fazem entender outros significados para a palavra amor.
    Um grande e carinhoso abraço!

    Curtido por 1 pessoa

  3. Olá, Ana. Que texto sensível, uma ode à companheira que foi e será sempre um anjo da guarda. Certamente. Só quem preza, cria, e admira animais sabe da imensidão de seu amor, sem medida, sem ranço de preconceito, sem ressalvas de qualquer tipo. Um amor maior que eles próprios que tanto nos ensina. Agradeço a leitura, não sem um nó apertado na garganta que quer sair, incontido.

    Curtido por 1 pessoa

  4. Muito comovente, Ana Maria….Mónica com certeza está num belo lugar, esperando por você…Amei seu conto, e digo mais, já tenho 5 cachorros me esperando na ponte do arco-íris, mais oito aqui…e dentre esses, dois (com os quais tve mais afinidade e convivência) eu posso garantir que, qdo se foram, doeu tanto quanto a partida de uma “pessoa humana”.
    Saudade eterna. Alegria também ❤
    Muitos beijos!

    Curtido por 1 pessoa

  5. Sempre justifiquei minha recusa em ter esses bichinhos lindos em casa dizendo que eles um dia morrem e vou ficar arrasada. Pois bem, acabei aceitando hospedar um cachorro lindo, e acabei me apegando tanto que nem sei mais , viu?Poderiam ser eternos, não acha?
    Enfim, seu conto provoca uma sensação quentinha, aconchegante, de volta à infância mesmo. A morte faz parte, é claro. No entanto, o que fica mais evidente é que você carrega lindas lembranças daquela que se tornou seu anjo de guarda. Lindo tudo isso. Parabéns!

    Curtido por 1 pessoa

  6. Oi, Ana,

    Tudo bem?

    Cachorros se tornaram meu ponto fraco de uns anos para cá. Faço alguns resgates e cada um que passa or minha casa, antes da adoção, é um novo tipo de amor que se revela. Cães nos ensinam a amar. Não à toa, acabei adotando 10 e agora estou “pagando” pelo meu exagero em uma grande cidade, cheia de vizinhos. rsrsrs Coitados.

    Gostei muito do seu conto. A narrativa tem uma pegada de literatura de formação, com a maturidade de quem conhece cada centímetro daquilo que está falando.

    Parabéns por seu conto e por seu amor.

    Beijos
    Paula Giannini

    Curtido por 1 pessoa

  7. Pra mim foi difícil ler pq eu amo os animais e sei o tamanho da dor de perdê-los. Hoje tenho 3 gatinhos, já tive muitos outros, desde os 12 anos de idade. Não tive filhos, então pra mim são a forma mais próxima de amor maternal q eu posso sentir. E eles me ensinam tudo. Ao longo de tantos anos (tive um gato q morreu com 18 anos, quase a idade da Monica), o q eles mais me ensinaram foi sobre morrer. Sobre a dor de perder quem amamos. Me ensinaram q a vida é assim mesmo – efêmera, passageira. E por isso mesmo a beleza de saber aproveitar o tempo em q temos a honra de conviver, de nos amarmos uns aos outros. E isso serve para gatos, cães e pessoas também. Todos estão aqui de passagem, e devemos aproveitar o prazer de sua companhia enquanto a temos. Esse é o presente da vida! Muito emocionante seu conto, Ana, querida! Parabéns!

    Curtido por 1 pessoa

  8. Oi Ana,

    Seu texto é todo um encanto, mas o último parágrafo… suspirei….Também amo cães, tenho uma história com um labrador chocolate que felizmente não vi morrer, acho que não aguentaria (ele fugiu, provavelmente foi roubado). Sempre imagino que vou revê-lo quando mudar de fase…Obrigada por compartilhar sua história com a Monica. Beijos.

    Curtido por 1 pessoa

  9. “Muitas pessoas dizem que não querem ter cães para evitar o sofrimento quando morrem” – já passei por isso. Por muito tempo me neguei a ter outro companheiro por causa da morte de um amigo de quatro patas, mas a gente acaba sentindo falta de um olhar tão amável e afetuoso, e hoje tenho um cachorro, uma cadela e uma gata. Não quero nem pensar no final da vida deles, é como perder um parente de sangue. Parabéns pela sensibilidade do texto.

    Curtido por 1 pessoa

  10. Um conto muito lindo sobre os anos que vc e sua família passaram ao lado desta cachorrinha formidável que lhes brindou com momentos únicos. A Mônica conquista a leitora que eu sou e imagino como deve ter sido maravilhoso estar na companhia dela por todos estes anos, e na mesma medida, doloroso, perdê-la para sempre. Você escreve dramas como ninguém. Seus contos são cheios de autenticidade e calor. Seus textos neste viés mais dramático dão conforto, aconchego, e uma paz consoladora apesar das lágrimas que as suas palavras cheias de sentimentos nos provocam. Gostei muito do que li. Boa sorte.

    Curtido por 1 pessoa

  11. Fiquei apaixonada por esta cachorrinha tão carismática! oda hora subo a pagina pra ver a foto dela.. hehe Teu texto escrito com toda a emoção boa das lembranças, nos comove, frase a frase…
    Parabéns!

    Curtido por 1 pessoa

  12. Ana, um conto singelo e delicado, trouxe-me o saudosismo do meu “Mampituba”. Há poucos travei uma batalha com o meu cãozinho doente, quase o perdi, não imaginava tamanho sofrimento, de ambas as partes. De qualquer sorte, o seu conto é Mampi, e todos os cães são Mampi! Bjs.

    Curtir

  13. Na vida a cada passo que damos encontramos algo especial. Apaixonei-me por Mônica, charmosa e companheira. É sempre uma grande aventura conviver quando estes irresistíveis animais de estimação. Esse conto tornou-se inesquecível, ao abordar o amor, a coragem e a dedicação. Parabéns pelo texto que emociona e entretém. Abraços!

    Curtir

Deixar mensagem para iolandinhapinheiro Cancelar resposta

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑