Passeio de Barco – Bia Machado

A FUNDURA DO RIO É TANTA que ninguém ia achar o corpo dele. Ia ficar lá embaixo, ia ser comido pelos peixes, pelas piranhas… Ou será que o boto salvava? Se é filho dele, salvava…

— Pai, não quis trazer a mãe por quê?

— Tua mãe tem medo desse barquinho aqui, não sabe, garoto?

— E é. Eu também, pai.

Pai, pai. Chega dessa palavra, Justino. Não sou seu pai. O famigerado do boto que é. Tua mãe foi capaz de aprontar isso comigo, agora eu tenho certeza. Vê se esses olhos verdes que tu tem iam ser meus. E essa pele clarinha aí. Eu tava cego. Mas agora não tô mais.

— Senhor não tá levando nada pra vender hoje, a gente vai fazer o que na cidade?

— Vou te levar pra conhecer um lugar.

— Que lugar?

— Espera que tu vai ver.

Esse garoto é bonito, meu Deus. Esse olho parece que brilha. O rosto até parece feito da mesma coisa daquelas estátuas de anjo da igreja. Filho de boto pode ser anjo? Criança é tudo anjo… Acho que a alma dele vai ser levada pelos anjinhos antes de virar comida de peixe. Ele merece mesmo ir pro céu, não ficar do lado do pai verdadeiro, aquele malandro, e da mãe, que a essa hora já deve ter sido devorada pelo menos a metade. Ela sim, mereceu. Tenho culpa não. Era o que eu devia ter feito assim que vi a carinha do Justino nesse mundo. Que filho meu ele não podia ser, não podia mesmo. Eu que fui besta, pensando que era. Deixei o menino pensar que eu era o pai. Mas não vou ter coragem de contar pra ele não. O tinhoso do boto que conte. E é agora. Tem que ser aqui.

— Ué, pai, parou aqui por quê?

Justino. Fui eu que dei o nome. Nome do meu finado pai. Disse que esse menino ia ser tão bom quanto ele foi. Mas agora…

— Que foi, pai? Viu alguma coisa? Sucuri?

Ah, moleque, que tristeza que tô sentindo aqui no peito. Já matei tanta gente, tanto bicho nessa vida… Agora vou fraquejar?

— O que vai fazer com o facão, pai?

— Quieto, Justino, faz favor.

— Tá…

Fui feliz de ser o pai desse menino. Vai ser um homem bom, Deus há de ajudar. Ensinei pra ele que deve ser honesto, que não deve fazer como eu fiz, tanta coisa errada nessa vida. E eu tentei mudar, tentei seguir um caminho pra ser melhor. Mas já não tenho mais idade nem jeito pra isso. Eu sou apenas isso, um matador. Também um pescador, mas… É, o que eu mais sei fazer é matar. Peixe, ou homem, até mulher. Só que eu nunca matei uma criança. Até hoje.

— Olha, pai! Parece um boto… Ele tá seguindo a gente, não tá?

Diacho… E não é que tá mesmo? Diacho de criatura do demônio! Acho que adivinhou o que eu queria fazer e veio atrás do filho… Deve de tá só esperando eu jogar o menino na água pra ele tomar conta, o safado.

— Inferno!

— Inferno por que, pai? Boto é bonito, o senhor não acha? Até já nadei pertinho de um…

— Que é que tá me dizendo, moleque?

— Vira e mexe aparece um, pra nadar comigo um tempão. Contei pra mãe, ela falou que não tinha mal nenhum, se fosse de dia… Quer ajuda pra remar, pai? O senhor tá cansado…

Mais um pouco e a gente chega na margem, a salvo dessa criatura. Sumiu, mas eu aposto que tá seguindo a gente, só esperando. Não vou dar esse gosto pra esse tinhoso não. Justino vai é ficar longe dele.

— Chegamos!

— Desce, Justino. E me promete uma coisa.

— Fala, pai.

— Fica longe do boto, faz favor. Essa criatura é do cão. Nunca mais chega perto dele.

— Tá, pai.

— Promete, filho?

— Prometo, pai.

— E me promete outra coisa: se eu sumir, vai morar com a Vó Inácia.

— E com a mãe, né?

— A mãe não vai poder mais ficar com você. Depois você vai entender. Tchau, filho.

— Pra onde o senhor tá indo, pai? Vai me deixar aqui por quê?

Não respondo, senão é capaz de não conseguir segurar as lágrimas. Tristeza e alegria, é o que estou sentindo. Triste por não poder mais cuidar do moleque. Alegre por ter deixado ele seguir a vida dele. Agora eu vou me entender com o desgraçado. Pego meu facão, caio na água e só saio daqui depois de acabar com essa criatura lazarenta. Ou morto, se ele acabar comigo primeiro. Assim que vai ser.

6 comentários em “Passeio de Barco – Bia Machado

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  1. Interessante esta releitura da lenda do boto, com a busca de vingança do marido que se sente traído, e mais interessante é a aceitação de que foi traído sim, mas com o boto. E, o pescador se convence de que o filho é do boto por causa da beleza que teria sido herdada.

    As cenas construídas retratam de forma ricamente estilizada e disfarçada, o passeio que deveria terminar com a morte do menino e muito bem ambientada permite perceber os padrões culturais de comportamentos. Gostei muito da narrativa mostrando os costumes, as crenças, a filosofia de vida da região.

    A narrativa é direta com o testemunho do personagem-narrador, que conduz o leitor pelos sentimentos da protagonista, principalmente, nas situações extremas de medo e insegurança, remorso e dúvida. Os diálogos estão críveis e adequados ao nível de linguagem, ao conteúdo, coerente e coeso.

    As emoções são sempre intensas e, o protagonista sofre de raiva; mas acorda a tempo, deixa o menino ir embora, com uns conselhos e ele parte para a luta, que, já sabe, será inútil — de qualquer forma, temos um final feliz. Tudo bem amarrado: título, história, a lenda, os ciúmes, o nome do garoto.

    Especialistas em folclore, a lenda nada mais é do que um modo de justificar casos de gravidez que aconteciam fora de condições impostas pela tradição (casamento), principalmente de mulheres solteiras e viúvas. O preconceito sexual como segunda temática trouxe mais interesse pelo conto.

    Muito bom trabalho. Um grande e carinhoso abraço.

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  2. Uau, Bia!
    Excelente conto, daqueles que a gente lê de um fôlego só, e imaginando as falas com as vozes dos personagens.
    A história de um fora da lei como tantos que existem nesse Brasil afora, vingando a possível traição da mulher, não com outro homem, mas com o famoso boto, que seria o pai de seu filo (a certeza vinha da diferença de fenótipo que o menino apresentava).
    No início já sabemos que a mãe já estava morta, gostei da revelação de que tinha sido o pai o autor….achei o final dramático, triste, mesmo…o homem bem pode ter sofrido um surto…
    Sou amapaense e conheço bem a história do boto. A população que vive às margens dos rios garante que o boto saía nas noites de lua cheia pra namorar e voltava pro rio antes de amanhecer – e curiosamente às vezes aparecia um boto entre o rio e os locais das festas – nunca vi o boo, mas deve ser bem sensual rsss
    Ótimo conto, parabéns!

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  3. Oi Bianca,

    Melhor conto seu que já li.

    A história traz tensão do início ao fim, guiando a leitora com curiosidade. A técnica de deixar a leitora saber de algo que o personagem menino não sabe, é muito bem utilizada aqui.

    O folclore como pano de fundo é genial. O fato de o boto servir de desculpa para traições, e, no caso aqui até um assassinato é uma realidade das comunidades ribeirinhas. Já havia lido sobre isso em uma pesquisa que fiz sobre a região e seus mitos. É o folclore influenciando a vida real das pessoas.

    Final perfeito. Tudo no tom.

    Lindo, nota 10!!!

    Beijos
    Paula Giannini

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  4. Um texto muito tenso, porque o tempo inteiro a gente não sabe o que vai acontecer entre o menino e o pai. Durante o trajeto acompanhamos as desconfianças do homem e ficamos sabendo que ele já matou a esposa. Aqui, como em Dom Casmurro, não nos é dada a informação de que se houve ou não a traição. O ciúme cega as pessoas, muitos embarcam em uma fantasia e criam amantes imaginários para as mulheres. O texto é tão interessante quanto fluído. Gostei bastante. Beijos.

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  5. Maravilhosa essa história, Bia! Amei! Não apenas por nos remeter ao folclore, à história do boto, mas por construir uma trama que nos prende até o final, querendo saber o que vai acontecer com o menino. Uma preciosidade essa. Parabéns pelo texto.
    Beijos e abraços carinhosos.

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