Só diante do bicho a menina fica livre da timidez. É. Algumas pequenas fugas e o bicho para. É uma lagartixa. Não, muito grande para lagartixa. Ou um lagarto? Pequeno também para lagarto.
A menina e a lagartixa esperando o ataque. Um desafio ou uma contemplação? Para a lagartixa a menina é uma ameaça, máquina-que-atira-pedras. Que é uma lagartixa para a menina? Muito mais que uma lagartixa….
Ela descobre que o importante da lagartixa é que ela é um bicho. E relembra seus confrontos:
a menina e o caranguejo: um pouco mais de sobressalto;
a menina e a cobra: uma pesada força bíblica (A menina se lembra do rio, a fieira de peixes, e a cobra. Por duas vezes, em tempos diferentes, em espaços diferentes, a cobra viera comer-lhe os peixes. Não era crueldade nenhuma pescá-los. Mas comê-los! A cobra era algo repelente.);
a menina e os tico-ticos: chegam pertinho, mas é de dia;
a menina e o louva-a-deus: um esmagamento.
Houve a menina e os bichos do zoológico, mas a estranha sensação de confronto só valia com os bichos em plena liberdade, quando dependiam de uma pedra ou um pedaço de pau nas mãos dela, como foi com o louva-a-deus e o caranguejo…
A menina e o gato: uma aventura mais longa.
O gato veio na ponta do gesto e lhe disse, que pensava, amava, observava os homens. E a menina lhe perguntou sobre a estranha maneira de os gatos se amarem.
O gato lhe disse que só o amor valia e era preciso gastar esse amor com todas as forças. E que por isso dormia tanto de dia e precisava comer, e miar em todos os tons. Se odiava os homens? Não, assim-assim. Tinha era compaixão deles, sobrecarregados, irascíveis, sempre ocupados.
Foram dar um passeio. Na barraquinha do calçadão, o gato pediu-lhe uma porção de presunto. Mandou vir. Ele precipitou-se sobre a carne e a menina descobriu pelos gritos de protesto que tinha companheiros à mesa e aquilo era um absurdo: onde se viu gato comer com gente.
A menina olhou para o gato que também ria, beijou-lhe o focinho. Perguntou ao gato: por que veio ter comigo? (A pergunta pareceu-lhe pegajosa, demorou um século para sair da garganta.)
O gato, a essa altura dormia, mas acordou para responder-lhe: olha, você está imensamente desamparada e gente não resolve seu caso. Você ainda teve forças para fazer aquele gesto, então eu vim. Você se distraiu comigo. De agora em diante serei seu amor. Eu serei a sua sombra. E você me terá.
No outro dia, a menina acordou tarde, sentindo calor. Uma calma quente. Os olhos uns traços verdes, petulantes. Levantou-se. Olhou a própria sombra: era a sombra do gato.
Uma espécie de Alice atual e eterna e seus confrontos interessantes com os bichos até achar aquele que lhe completava. Acredito que o conto não é apenas o que se vê literalmente, mas que existam significados profundos, arquétipos representados pelos bichos com quem a garota se confronta. Gostei bastante. Esse ar lúdico e inteligente sempre me encanta. Gostei muito, princesa Fátima. No fim, quando a menina olha para a sombra e vê a sombra do gato, surge uma luz na cabeça da gente indicando que há muito mais ali. Beijos e muita saúde.
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Obrigada, Iolanda! Você sempre gentil com meus escritos. É um jogo de significados sim. Vamos ver no que dá. Beijos para você.
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Que lindeza de texto, Fátima. Criativo, interessante, instigante. Muito bom, parabéns.
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Obrigada pela leitura e comentário gentil. Sua opinião é importante para mim. Beijos.
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Que texto mais instigante e enigmático, Fátima. Uma espécie de Alice, essa menina. Adorei a “pergunta pegajosa que demorou um século para sair da garganta”. Trouxe a sensação de pesadelo que localiza a história em um limiar entre sonho e realidade. Adorei a sombra do gato no final. Muito bom, querida. Um abraço, um beijo e muita saúde para você.
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Elisa, você sempre estimulando. Obrigada! Beijos!
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Querida Fátima,
Tudo bem?
Que ótimo conto! A relação menina x animais, mais que aos sonhos, nos arrasta ao lugar onde eles nasces, em nossos subconsciente, na psicanálise, em lugares recônditos que nem mesmo n´s conhecemos.
Quem é a menina que se confronta com os animais? Quem os animais que desfilam frente a ela, como imagens de partes de si mesma. Um texto para ser lido, deixando-se aflorar o sensorial.
Parabéns,
Beijos
Paula Giannini
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Um enorme incentivo o seu comentário, Paula. A menina não tem nome, representa todas elas e o conjunto de animais é a própria vida com seus encontros e desencontros, obstáculos e identificações. Grata pela leitura! Beijos.
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Adoro personagens sem nome, são meus preferidos. Empatia na certa.
Beijos, querida amiga.
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Se a menina se move, assim se movem os bichos. Não vi senão um duelo constante entre o real e o imaginário, entre as certezas e as incertezas dessa vida. O eu e a sombra, a perseguir seu dono, assim como a vida, sendo perseguida pela morte. Dois opostos, duas metades.
Parabéns pelo texto.
Um grande e carinhoso abraço.
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Para Platão, uma vida sem questionamento não deveria nem ser vivida. Com a sua filosofia Platão buscava a essência do ser dividido em duas partes: corpo e alma. Obrigada pela leitura e comentário.
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